Eu não sou o professor Cavaco – António Costa no debate com Catarina Martins.

Seguramente Cavaco Silva não é um bom exemplo de Presidente da República para ninguém – António Costa no debate que os candidatos fizeram para as rádios.

...nesse tempo do cavaquismo nós tínhamos uma televisão única” – António Costa em entrevista ao Observador (certamente num momento de forte nevoeiro mental pois foi precisamente “nesse tempo do cavaquismo” mais exactamente a 13 de Julho de 1990 que foi votada a lei que permitiu a existência de televisão privada em Portugal e terminasse aquilo que Costa designa como “uma televisão única”).

… À hora a que escrevo provavelmente António Costa já voltou outra vez àquele que se tornou o seu tempo-espaço de antagonismo nesta campanha: “o tempo do professor Cavaco”. Num primeiro momento é naturalmente de estranheza a reacção a esta fixação de António Costa na figura de Cavaco Silva que deixou a política activa em 2016 e que, ao contrário do que aconteceu com os seus antecessores na presidência da República, não fundou um partido como fez Ramalho Eanes, não criou uma fundação nem dá sinais de querer recandidatar-se a qualquer cargo como aconteceu com Mário Soares e nem sequer se desdobrou internacionalmente em múltiplas intervenções políticas como Jorge Sampaio (a propósito o que será feito da Aliança das Civilizações a que o antigo PR deu o seu alto patrocínio?).

Porque está então António Costa obcecado com Cavaco Silva? Afinal, como o próprio José Sócrates fez questão de recordar na entrevista que deu à CNN, o PS já teve uma maioria absoluta: a que ele, Sócrates, conseguiu! Sim, entre Março de 2005 e Setembro de 2009, Portugal foi governado em maioria absoluta pelo PS, facto que António Costa não pode ignorar não só porque já era nascido nessa data mas também e sobretudo porque integrou esse governo socialista de maioria absoluta nos nada irrelevantes cargos de ministro de Estado e ministro da Administração Interna.

Ora porque não fala então António Costa desse governo, o único em que o PS teve até agora maioria absoluta e, dando um salto para trás no tempo, se foca na maiorias absolutas de Cavaco Silva acontecidas entre 1987 e 1995? Porque não quer, não pode nem deve pois a maioria absoluta obtida pelo PS deixou de ser um caso de política para se tornar num caso de polícia para vários dos rostos do socialismo, a começar pelo próprio primeiro-ministro, José Sócrates, e como se isso fosse pouco acrescentou ainda mais um capítulo à história das nossas falências nacionais.

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António Costa fala das maiorias absolutas de Cavaco Silva pela prosaica razão de que a maioria absoluta conseguida pelo PS se tornou um assunto tabu para os socialistas.

Mas sigamos António Costa nesta sua viagem ao tempo do professor Cavaco: usando um termo caro aos socialistas “malhar” em Cavaco Silva resulta sempre pois não só a esquerda adora como a direita se acanha na hora de o defender e é incapaz de contrapor a um António Costa que afirma “Eu não sou o professor Cavaco” que o problema é mesmo esse: é na hora do balanço da acção governativa não ter nada de equivalente ao ”professor Cavaco”.

Registe-se que este recurso “ao tempo do professor Cavaco” enquanto antagonista imaginário representa também uma alteração significativa no discurso dos últimos anos: afinal os socialistas deixaram cair o célebre “a culpa é do Passos”. Porquê? Provavelmente porque já não estava a resultar, isto apesar de os candidatos de direita, à excepção de Francisco Rodrigues dos Santos, nada terem feito para desmontar a vergonhosa demagogia em torno dos cortes do “tempo da troika” e da “culpa é do Passos” na aplicação de um programa negociado pelos socialistas.

E aqui chegamos ao momento mais burlesco desta campanha, aquele em que António Costa desata a perguntar: “Quem é que acredita que com um Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa uma maioria do Partido Socialista podia pisar a linha?”. Desconheço se esta pergunta brotou da cabeça de António Costa ou se lhe foi sugerida por algum assessor ou consultor. No caso de a resposta ser “assessor ou consultor” o PS devia despedi-lo já porque de cada vez que António Costa pergunta “Quem é que acredita que com um Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa uma maioria do Partido Socialista podia pisar a linha?” milhares de portugueses sentem uma irreprimível vontade de rir. Um Marcelo fiscalizador das acções do Governo está nos antípodas do seu desempenho. Do caso de Tancos à escolha da PGR, das 35 horas na função pública à nomeação do novo presidente do Tribunal de Contas, da substituição do Chefe do Estado-Maior da Armada à reviravolta de opinião sobre a regionalização… Marcelo permitiu tudo e o seu contrário. António Costa sabe-o e sabe também que esta seu contraponto entre Cavaco e Marcelo é uma forma de ganhar ascendente sobre o actual presidente da República. Afinal à pergunta: “Quem é que acredita que com um Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa uma maioria do Partido Socialista podia pisar a linha?” a resposta só pode ser “Quase ninguém”, a começar pelo próprio, Marcelo, e a acabar em António Costa.

Não por acaso é quando trata do tempo de Cavaco Silva como presidente da República que esta viagem de Costa “ao tempo do professor Cavaco” se torna mais interessante. Na frase “Seguramente Cavaco Silva não é um bom exemplo de Presidente da República para ninguém” pronunciada por António Costa num dos debates, cabe a exasperação dos socialistas com Cavaco quando este estava em Belém e Sócrates em São Bento mas também a impaciência de um António Costa desejoso de queimar etapas na sua posse como primeiro-ministro em 2015. Mas lá no íntimo António Costa sabe (ou devia saber) que deve muita da estabilidade do seu primeiro governo ao facto do presidente Cavaco Silva ter exigido um acordo escrito aos partidos que apoiaram e integraram a geringonça. Entre as exigências de Cavaco Silva a António Costa contava-se precisamente a de que fossem apresentadas  garantias em relação à “aprovação de moções de confiança” e “aprovação dos Orçamentos do Estado“.

Em 2019, devidamente libertos do professor Cavaco,  PS, BE e PCP auto-isentaram-se de celebrar acordos escritos e o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, não só não viu nessa alteração qualquer sinal de crise de futura como normalizou essa mudança naquele seu frasear que parece uma versão jurídica do nacional-porreirismo: “Não me parece essencial haver acordo escrito por uma questão de princípio, mas também não me parece essencial haver acordo escrito porque as dúvidas que se poderiam formular sobre o acordo escrito acabaram por ser resolvidas pela prática da fórmula política“. O resultado chegou em 2021: BE e PCP chumbaram o Orçamento do Estado; António Costa anda por aí agarrado ao dito OE como um pregador a uma Bíblia; os antigos parceiros de Governo trocam acusações sobre quem provocou a queda do Governo e o presidente da República faz-se transparente numa crise que claramente também resultou da sua leviandade, pois não só não exigiu acordo escrito em 2019 como, em 2021, achou por bem anunciar que um chumbo do OE levaria a eleições antecipadas. A crise presente confirma que o formalismo institucional de Cavaco Silva faz muita falta a todos. E António Costa não é excepção.