Não há muito a acrescentar ao que mentes bem mais elucidadas do que a minha já escreveram, narraram e comentaram sobre a Jornada Mundial da Juventude. Contudo, como ateu convicto, mas baptizado, que fez a primeira comunhão, profissão de fé, crisma (na foto) e esteve na JMJ de Santiago de Compostela em 1989, talvez tenha uma perspetiva independente de quem está por fora, mas já esteve por dentro.

Corria o ano de 1987 quando terminei o nono ano de escolaridade no Cartaxo e, com ele, o último ano de catequese disponível nos manuais. O leque de possibilidades religiosas à minha frente incluía várias atividades, incluindo ser eu próprio ‘instrutor’ de catequese, e juntar-me a um ‘grupo de jovens’ que dava pelo nome ‘Jovens sem fronteiras’. Abracei ambas e, modéstia à parte, semanas depois dava uma das melhores aulas de catequese que o Ribatejo já testemunhou. Nela expliquei às crianças a importância de ir à missa aos domingos, tarefa que não é fácil porque concorria diretamente com os desenhos animados oferecidos pela RTP1, numa altura em que ainda só tinha uma irmã. Os materiais pedagógicos à minha disposição incluíam fotografias a preto e branco de sacerdotes durante a eucaristia, crianças com sorrisos adoráveis, pombas esvoaçantes e outros grafismos de natureza inspiradora. Optei antes por puxar de um marcador preto e desenhar um esboço simplificado de um potente Fórmula Um numa folha branca A3, perante uma plateia de seis anos que ia sussurrando, intrigada, “É o Nelson Piquet!”.

Apesar dos meus fracos dotes ilustradores, consegui destacar o depósito de combustível e, em conjunto com os olhares ávidos de mais detalhes, construímos conjuntamente o raciocínio de que, da mesma forma que o Fittipaldi tinha de ir à box meter combustível, também nós temos de ‘ir à box’, aos domingos, encher o depósito de “palavras boas”, que nos permitiam enfrentar a semana com a positividade requerida a uma pequena mente que está a dar os primeiros passos no mundo.

Sentia-me hipócrita quando, todas as semanas, marcava falta às crianças que “não tinham ido à box” no domingo anterior, quando eu próprio não metia lá os pés há anos. Gostava da ideia de reunir alimentos, roupas e dinheiro para os ‘Jovens sem fronteiras’ encherem um contentor que seria entregue num país carenciado africano, mais ainda porque podia fazê-lo na companhia da filha do carteiro local, por quem sentia um fogacho adolescente. Mas a minha vontade de ajudar o próximo não incluía orar com o resto da população durante uma hora aos domingos, uma tarefa da qual me isentei logo que me foi permitido.

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Desliguei-me da igreja bem cedo, apesar de reconhecer o mérito e empenho dos sermões dos padres Cândido, no Cartaxo, e Branco, na Póvoa da Isenta, terra do meu pai. Mas cedo percebi que havia uma diferença abismal entre as palavras retiradas de um guia, uma espécie de ‘Manual de bom comportamento cristão’, e os comportamentos que observava à minha volta.

Foi durante a adolescência que eu (e todos os adolescentes da nossa espécie) tomei consciência da diferença entre o que “deve ser” e o que de facto “é”. Essa diferença, para um cérebro em crescimento, é suficiente para o atirar para dentro de um armário durante dois, três ou mais anos, até que nos consigamos reconciliar com a crueldade do mundo à nossa volta.

Foi nessa altura que eu, como tantos outros adolescentes, descobri que o ‘Deus’ descrito no tal ‘Manual de boas práticas’ não existe.

Pelo menos não da maneira omnipotente e omnipresente que é descrita ao longo de centenas de páginas que nos incitam a sermos melhores pessoas, a não matarmos, não roubarmos, não cobiçarmos e, genericamente, não sermos os belos filhos da p#ta que temos sido desde que a seleção natural ditou que impuséssemos ao planeta, e uns aos outros, uma visão bastante diferente da que é promovida no dito ‘manual’.

A Sinéad O’Connor arruinou a carreira quando, em 1992, fechou a sua actuação no Saturday Night Live rasgando a fotografia de João Paulo II com as palavras “Fight the real enemy”. Na altura (quase) ninguém percebeu do que estava a falar e foi preciso ir ter com o criador (o tal que não existe) para o assunto vir novamente à baila e se perceber que, afinal, estava a protestar contra os maus-tratos inenarráveis que a igreja católica infligiu às crianças irlandesas, descritos em detalhe no filme de 2013 Philomena. Nele podemos ver a história verdadeira, contada com a ajuda da sublime Lady Judy Dench e o não menos impressionante Steve Coogan, de uma mãe solteira forçada a deixar o seu filho a freiras que o venderam a um casal de pais adoptivos americanos, prática comum na Irlanda da época a que os acontecimentos se referem.

A Igreja católica tem sido pródiga em proporcionar histórias de terror e o nosso cantinho à beira-mar plantado não é exceção. O relatório recente aponta milhares de casos de abusos chocantes, mas, de todos, o mais chocante para mim foi a indemnização que, há muitos anos, me recordo de ver atribuída a uma das vítimas do celebérrimo caso ‘Casa Pia’. Cinco mil euros. Não me lembro do nome da vítima, mas lembro-me (bem) do número que um coletivo de juízes decidiu atribuir a um jovem que sofreu horrores dignos do filme de 1996 ‘Sleepers’. Cinco mil míseros euros.

Esta é a Igreja católica que temos e que se esforça, agora, por se redimir, na pessoa de um Papa diferente e que decidiu, finalmente, pegar o touro pelos cornos.

Gosto deste Papa.

E, se o recente filme Two Popes oferece algum rigor, dir-se-ia que Jorge Bergoglio obedece à regra mais sacramental de todas na busca pelo líder perfeito, que é aquele que não o quer ser.

Este Papa proferiu frases memoráveis durante a sua estadia em Lisboa. Brindou-nos com um discurso inclusivo, apaziguador, que incita todos, e todas, a fazerem o que estiver ao seu alcance por todos, e todas, os que estão à sua volta. Voltou a pedir desculpa pelas atrocidades feitas em nome da instituição a que preside e não colocou paninhos quentes nos temas igualmente escaldantes da atualidade, incluindo as alterações climáticas, que nos empurram para o ‘tal’ inferno descrito no ‘manual de boas práticas’ e tão bem conhecido por todos, e todas, que lutam contra as chamas que consomem as nossas florestas secas todos os verões. Isto perante um coro inacreditável de teimosos, mas deixemos essa caixa de Pandora sossegada por agora.

Sei que o deus de que este Papa fala não existe, mas não sou surdo e sei que a mensagem do Papa Francisco é positiva e merece ser ouvida.

Também sei que a mensagem passou de forma tão clara, e isenta de ruído, graças a uma organização (quase) tão imaculada como a da concepção descrita no tal manual. Não fossem uns ajustes diretos aqui e uns gastos excessivos acolá, teríamos acolhido quase dois milhões de peregrinos sem mácula de pecado, tarefa que me parece impossível à luz do comportamento tradicional da nossa espécie.

Mas andámos lá perto e, por isso, estamos de parabéns. Nós, portugueses, que recebemos o mundo de braços abertos.

Eu cá gostei de lhes dar explicações sobre onde podiam morder qualquer coisa baratucha e sem filas. E eles, e elas, recompensaram a nossa simpatia com cânticos, pulseiras, terços, sorrisos, abraços e agradecimentos em várias línguas.

Foi uma semana bonita, repleta de alegria, juventude, cruzes e faces amigáveis pelas ruas, apesar do ar cansado e algum calor na reta final.

E como esquecer as imagens impressionantes dos mares de crentes (e não só) que entupiram o Parque Eduardo VII e Avenida da Liberdade, o Parque Tejo e arredores, sem nenhum incidente de nota, sem confusões, sem os petardos e disparates a que as celebrações desportivas, na mesma área e com números significativamente menores, já nos habituaram?

Como residente em Lisboa, como português e como cidadão pagador de impostos, gostei. Gostei de tudo. Não tive papel nenhum, para além de sorrir para os rostos que também me sorriram, mas gostei.

Gosto deste Papa e gostei de sentir as JMJ à minha volta.

Mesmo não sendo movido pela mesma crença que o move, gosto deste Papa Francisco e espero que a Igreja e fiéis que lidera o mereçam.