Foi dado recentemente à estampa mais um capítulo da saga: “quando a esmola do Governo/legislador fiscal é grande, a Autoridade Tributária desconfia”. Um capítulo de um folhetim que se tem vindo a adensar e cuja trama parece tecer-se na coincidência entre um surto relativamente recente no volume de pedidos de informações vinculativas fiscais e uma tendência indisfarçável, nas respostas a esses pedidos, para interpretações da AT cada vez mais restritivas e, há que dizê-lo, manifestamente parciais a favor da receita fiscal. Alguns exemplos serão imediatamente reconhecíveis por quem acompanha a fiscalidade quotidianamente: as informações vinculativas em matéria de taxas de IVA de múltiplos produtos em que a Autoridade Tributária (AT) insiste em perfilhar tratamentos distintos para produtos equivalentes, e que foram até vítimas da pena mordaz de João Miguel Tavares, ou uma informação vinculativa muito comentada e censurada nos fora fiscais informais sobre o resultado em IRC da partilha do ativo de uma sociedade (N.º 4467/2017). Podíamos citar vários outros exemplos, mas queremos aqui cingir-nos à mão cheia de informações vinculativas sobre o regime especial de rendimentos de direitos de autor e direitos de propriedade industrial registados, conhecido na gíria fiscal simplesmente por “patent box” (PB), que foram recentemente divulgadas. O PB é um regime fiscal que adquiriu relevância com a emergência da economia do conhecimento e com a competição pelo valor acrescentado tecnológico, reconduzindo-se à aplicação de uma taxa especialmente reduzida sobre os rendimentos de intangíveis. Pelo seu potencial de utilização agressiva, o PB foi escrutinado pela OCDE ao abrigo da Action 5 do Plano BEPS, que definiu as condições sob as quais seria compatível com uma concorrência fiscal saudável, sendo que hoje, só na Europa, coexistem mais de 21 regimes distintos. Por cá, o regime foi introduzido na Lei de Reforma do IRC (2014), abrangendo inicialmente patentes e desenhos e modelos industriais e proporcionando uma dedução de 50% dos rendimentos líquidos (inicialmente, brutos) das respetivas atividades de venda e licenciamento. O regime foi mais tarde adaptado às diretivas da Action 5 do BEPS, e tem, de forma assumida, constituído uma aposta dos executivos PS.

Porquê, então, “Patent Box 3.0”? Essencialmente, porque o regime já conheceu duas versões no sentido do seu alargamento e atratividade fiscal, primeiro com a importante inclusão dos rendimentos de software registada em 2020 e depois, em 2022, com o reforço da delimitação dos rendimentos líquidos não sujeitos a IRC de 50% para 85%. Este reforço projeta, aliás, a visão do anterior Ministro da Economia sobre a aposta nos incentivos fiscais direcionados para o aumento da produtividade, em detrimento da muito debatida redução da taxa de IRC e Derramas. Seja como for, não há qualquer dúvida de que todos os sinais apontam para uma visão do PB como catalisador fiscal do investimento verdadeiramente produtivo, na vanguarda, em termos de competitividade fiscal, dos regimes europeus.

Ora, neste contexto, a própria sistematização do PB no nosso ordenamento fiscal ou mesmo as regras básicas de hermenêutica fiscal foram votadas ao esquecimento nas recentes pronúncias da AT sobre alguns aspetos cruciais deste regime, num volte-face de secretaria digno de Sir Humphrey Appleby (o de Sim, Senhor Ministro). No primeiro pedido de informação (Proc. n.º 2022 0002101/PIV 22968), pretendia a empresa requerente obter confirmação de que o PB não qualificaria como “benefício fiscal” para fins do limite estabelecido no artigo 92.º do Código do IRC (CIRC), que restringe a 10% do IRC liquidado a vantagem que os sujeitos passivos podem retirar dos benefícios fiscais e de outros desagravamentos porventura elencados expressamente no mesmo artigo. Note-se que este limite tem mais benefícios excecionados do que os que entram na regra, sendo designadamente excluídos todos os benefícios relevantes ao investimento (por exemplo, SIFIDE e RFAI). Surpreendentemente, a AT vem advogar que o PB estaria sujeito a este limite, argumentando com a sua natureza de “benefício fiscal” na “generalidade das opiniões” e por constar da lista de benefícios fiscais do Relatório do Grupo de Trabalho para o Estudo dos Benefícios Fiscais (GTBF).

A superficialidade deste argumentário não se consegue compreender. Em primeiro lugar, bastaria pensar na comparação do PB com os seus homólogos europeus e no desígnio do Governo em reforçá‑lo para que atinja uma taxa efetiva de tributação dos rendimentos abrangidos entre 3,15% e 4% para perceber que este nunca desejaria que essa taxa não pudesse baixar de 19% por força da aplicação do dito limite, destituindo o PB de qualquer materialidade. Depois, resulta evidente do próprio nº 1 do artigo 92.º do CIRC que não qualificam como “benefícios fiscais”, para esse efeito, os desagravamentos fiscais que constem do CIRC, posto que a redação desse artigo exclui da noção de “benefício fiscal” o regime do nº 13 do artigo 43.º do CIRC, o qual não deixa de ser um“benefício fiscal” na acepção muito ampla do artigo 2.º do EBF; do mesmo modo, flui do elenco de benefícios excluídos da aplicação do dito limite de 90% do IRC que o legislador quis apenas sujeitar os previstos no EBF ou em legislação extravagante. Recorde-se ainda que quando o PB foi instituído, a Lei de Reforma Fiscal mexeu igualmente no artigo 92º do CIRC e nada especificou quanto ao PB, o que demonstra que, ao inseri-lo no CIRC, o legislador nunca o encarou como sendo passível do dito limite. Finalmente, o argumento de que o PB foi incluído no catálogo de “benefícios fiscais” do aludido GTBF também não colhe, pois dele constam praticamente todos os desagravamentos fiscais no domínio de todos os impostos (várias centenas de isenções e desagravamentos fiscais), incluindo quase todos os desagravamentos previstos no CIRC, nomeadamente muitos que é inconcebível sujeitar ao limite em causa, como seja a isenção em IRC para rendimentos de associações e fundações ou o denominado “participation exemption”. De resto, o próprio regime do artigo 75.º do CIRC consta do catálogo do GTBF mas não foi qualificado como “benefício fiscal” quando concorreu para o limite do nº 1 do artigo 92.º do CIRC, sendo que, para aquele Grupo de Trabalho, os benefícios fiscais «com maior grau de estabilidade devem ser incorporados nos códigos tributários respetivos e os benefícios que tenham uma natureza menos estrutural, mas que se revistam de estabilidade temporal, devem ser incluídos no Estatuto [dos Benefícios Fiscais]».

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Não obstante estar manifestamente equivocada, esta Informação pode surtir um efeito indesejado pelo legislador se os contribuintes se retraírem de aproveitar o PB, efeito esse que poderá ser exponenciado se os mesmos fizerem igualmente fé na interpretação vertida pela AT nas outras recentes Informações vinculativas que se debruçam sobre o PB, nomeadamente no domínio do licenciamento de software.

Seria fastidioso dissecar aqui o teor dessas Informações, mas porque três delas (22777, 21235 e 20416, todas de 9 de fevereiro de 2023) assentam num erro de recorte conceptual e num défice de fundamentação evidentes, vale a pena que lhes dediquemos algumas linhas. O erro surge logo na proposição fundamental das Informações, a de que os rendimentos abrangidos pela PB configuram royalties. De facto, ao simplisticamente preconizar esta assimilação, a AT afirma de forma implícita que os rendimentos da PB não comportam os decorrentes da alienação definitiva de intangíveis registados, o que contraria expressamente a letra do artigo 50.º-A, a qual engloba a “cessão” desses direitos. É que, como resulta da al. b) do nº 14 do artigo 14º do próprio CIRC, do artigo 12.º da larga maioria das Convenções sobre Dupla Tributação celebradas por Portugal e ainda dos comentários à Convenção Modelo da OCDE em que quase todas estas se baseiam, a contrapartida pela alienação definitiva de um intangível registado não configura um royalty. Ou seja, de uma penada, aquele entendimento mutila a PB de uma parte importante do seu espectro de aplicação. Por outro lado, o défice de fundamentação manifesta-se na total ausência de elementos de interpretação a suportar as conclusões formuladas nestas informações vinculativas, quando é sabido que a versão mais recente dos ditos Comentários – que constituem o documento de soft law mais importante na matéria – inclui inúmeros exemplos de situações de licenciamento de software, nos mais diversos contextos, que teriam forçosamente de servir como referência fundamental para esta análise e que contrariam algumas daquelas conclusões. Mais: em reserva a esses Comentários, Portugal advoga mesmo um conceito de royalty em matéria de licenciamento de software mais amplo do que o que neles vem desenvolvido e ilustrado.

Portanto, as Informações em causa parecem ser mais um corolário de um certo ativismo da AT em fazer da sua soft law um instrumento de compressão radical de regimes de desagravamento fiscal, que se alimenta do receio generalizado dos contribuintes em atuar sem certezas absolutas perante a praxis crescente de “criminalização” de quaisquer infrações fiscais. A perdurar, esse ativismo terá como resultado uma irremediável descredibilização de um instituto crucial para a redução da litigiosidade fiscal e para a promoção da cooperação da AT com os contribuintes.