Estamos num período a que, no espaço político-mediático, se convencionou chamar de “rentrée”. Após as férias, os partidos vão posicionando os temas que pretendem colocar na agenda e vão-se reposicionando no campo do jogo político. Os partidos no governo tentam estabelecer as condições para a sua própria manutenção no poder e para levar avante um programa. Os partidos na oposição tentam construir perante o eleitorado a sua imagem enquanto alternativa, sem perder de vista “ganhos de causa” que possam obter com a negociação parlamentar.

No quadro atual de minoria da AD na Assembleia da República, associado a um “sentimento”, percetível até a nível global, de polarização política, este xadrez partidário é especialmente complexo. A discussão e aprovação do Orçamento para 2025 é um primeiro campo de batalha que poderá consolidar o (des)equilíbrio possível na política portuguesa para os próximos tempos ou se, dentro em breve e de forma aguda, teremos de reiniciar novo jogo.

Para a Iniciativa Liberal, que não tem no Parlamento a capacidade aritmética de fazer contar as suas propostas e que se estabelece de forma clara com uma ideologia avessa aos extremos e aos absolutos, esta “rentrée” é especialmente desafiante. Como pode o meu partido manter a sua relevância e afirmar-se de forma diferenciada no atual quadro político? Há sequer espaço para o fazer? A verdade é que, independentemente das circunstâncias, este jogo tem de se jogar e nunca pode um partido desistir dele. E se é verdade que a Iniciativa Liberal tem pouca ou nenhuma margem para poder impor a realização das suas propostas, há uma oportunidade para um partido responsável, que é o de impor e garantir que o Governo da Aliança Democrática realize as suas propostas.

Ou seja, dentro do que é o programa da AD e que foi sufragado pelos eleitores nas últimas eleições, e no que a Iniciativa Liberal encontre de ações e medidas de melhoria, liberalizantes do Estado e do país, podemos, em nome do próprio eleitorado, agir como “cobradores de promessas”, realizando dessa forma a nossa visão de um Portugal mais liberal.

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Neste sentido e seguindo temas já lançados pela Iniciativa Liberal na sua comunicação “Olimpíadas do Desenvolvimento”, arrisco complementar e trazer novos pontos à discussão em cada tema, dando o meu contributo para a “rentrée” Liberal.

1. Rendimento e crescimento económico

O partido tem-no afirmando consistentemente e eu concordo: o crescimento económico é o tema essencial e que deve merecer a maior atenção dos agentes políticos. Acrescento que, tal como já disse em discurso de apresentação da candidatura “Unidos pelo Liberalismo”, este tema deve ser transformado e afirmado como um desígnio nacional concreto:

Ultrapassar o PIB per capita da média europeia através de políticas liberais, que não se esgotam na política fiscal.

Mesmo só falando de política fiscal, esta vai muito para além do valor das taxas aplicáveis. Não só da baixa fiscal, a Iniciativa Liberal tem de ser a principal defensora de uma fiscalidade simples, estável, fiável e sindicável. Assim sendo, podemos e devemos exigir ao Governo AD que implemente e concretize o seu programa (pp. 121-125) nas medidas:

  • Simplificação e redução dos custos de cumprimento das obrigações declarativas;
  • Forte simplificação fiscal, eliminando exceções, regimes especiais e incentivos fiscais dispersos (em particular os que dependem de condições não observáveis
    ou inverificáveis);
  • Reforço da estabilidade tributária e garantir a previsibilidade no pagamento de
    impostos;
  • Reformular a justiça tributária, com o intuito de reduzir drasticamente a litigância e
    as pendências em todos os tribunais tributários;
  • Reforma da AT, para reforçar equilíbrio da relação com os contribuintes.

Mas, apesar de as políticas fiscais poderem potenciar um contexto mais ou menos favorável ao crescimento económico, não é o seu motor. O motor do crescimento económico é o investimento, que depende essencialmente dos agentes económicos privados. Só um cenário favorável ao investimento porá Portugal num caminho ambicioso do crescimento económico. E, enquanto liberais, sabemos que esse cenário só é possível com mais concorrência, menos burocracia e menos custos de contexto. Nesses aspetos, há muito a “cobrar” à AD do que resulta do seu programa (pp. 130-156). Destaco:

  • O robustecimento da independência das Entidades Reguladoras, com concursos internacionais para os seus dirigentes;
  • Libertar recursos financeiros das empresas que são retidos pelo Estado, nomeadamente através da criação da conta-corrente entre empresas e Estado e garantindo o pagamento a 30 dias pelas entidades públicas;
  • Reforma do Banco de Fomento, dotando-o de um modelo de governação sólido e abrindo a estrutura acionista a bancos privados e bancos promocionais europeus, trazendo uma dinâmica de escrutínio mais abrangente;
  • Criação de um Regime de Validação Prévia de Investimento, estabilizando um regime fiscal e de incentivos a vigorar por 10 anos, baseado em “templates” previamente preparados e uniformes de pedido e de decisão, assinados com cada empresa investidora;
  • Iniciar uma efetiva digitalização da Administração Pública por fases progressivas: Fase 1: “One-stop-shop” (agregação dos diversos serviços públicos numa só plataforma); Fase 2: “No-stop-shop” (prestação de serviços públicos de forma automática); Fase 3: “Proactive-stop-shop” (Interação com o cidadão e recomendação mediante necessidades, com base em algoritmos e em inteligência artificial);
  • Modernização da Justiça económica, agilização dos processos de heranças, simplificação dos processos de registo da propriedade e reforma dos regimes de insolvência

2. Saúde e educação

A Iniciativa Liberal é a maior defensora da liberdade de escolha para o acesso à saúde e à educação. O Estado deve garantir a universalidade no acesso e a equidade na prestação desses serviços, sem preconceitos e sabendo-se aproveitar toda a capacidade existente. Décadas de centralismo e viés ideológico levaram a sistemas atuais de saúde e educação que, pragmaticamente, são incapazes de assegurar a efetiva “universalidade” de acesso a serviços de qualidade. Há uma dessintonia profunda entre as afirmações socialistas grandiloquentes de “saúde e educação para todos” e a sua efetiva realização.

Listas de espera intermináveis, urgências fechadas, o caos no Verão, aprendizagens perdidas em pandemia e ainda não recuperadas, o resvalar das escolas públicas nos rankings, tudo isto são sintomas de algo mais profundo, o que implica uma revisão geral dos sistemas, seguindo políticas liberalizantes.

Podemos encontrar vários pontos de desacordo ou até de discórdia entre a Iniciativa Liberal e a AD nestes temas, mas não podemos deixar de exigir que o Governo cumpra o que se propôs fazer nas seguintes medidas.

Na saúde (pp. 43-50):

  • Recurso a todos os meios públicos, privados e sociais existentes e devidamente articulados, num sistema competitivo que premeia a eficiência e a qualidade da resposta de saúde aos cidadãos;
  • Garantir Consultas de Especialidade dentro do tempo de espera máximo, nomeadamente, através da atribuição de um Voucher de Consulta;
  • Organizar o Sistema de prestação de cuidados de saúde hospitalar com maior autonomia, atuando integradamente para a realização dos objetivos contratualizados e com avaliação de resultados;
  • Rever as ULS e concretizar Sistemas Locais de Saúde flexíveis com participação de entidades públicas, privadas e sociais;
  • Desenvolver um sistema concorrencial competitivo para cirurgia de ambulatório;
  • Definir, nas zonas mais carenciadas do País, um novo conjunto de incentivos para
    atração de profissionais de saúde, em articulação com as autarquias locais;
  • Desenvolver um novo modelo de contratualização do SNS, com uma nova entidade dedicada para o efeito, sujeito a uma supervisão profissional de alto nível e
    transparente.

Na educação (pp. 10-14):

  • Implementar o A+A, “Aprender Mais Agora”, um plano de recuperação da aprendizagem que realmente permita aos alunos construir um caminho de sucesso escolar. O A+A incluirá recursos adequados para o apoio aos alunos, a capacitação de docentes para implementar um sistema de tutorias, assim como o reforço de créditos horários;
  • Redefinir o papel do Ministério da Educação, atribuindo responsabilidades de regulador e não de decisor sobre o funcionamento de todas as escolas públicas;
  • Acesso universal e gratuito: alargar a oferta pública e sem custos para as famílias de creche e de pré-escolar, seja aumentando a capacidade da oferta existente no Estado, seja contratualizando com o sector social, particular e cooperativo (evoluindo para um sistema de cheque-creche);
  • Flexibilizar as cargas letivas obrigatórias nos vários níveis de escolaridade;
  • Redefinir os percursos científico-humanísticos do ensino secundário, no sentido
    de alargar as disciplinas que os alunos podem livremente escolher frequentar;
  • Melhorar o sistema de transferência de competências para as Autarquias,
    articuladamente com as escolas;
  • Construir, em diálogo com os diretores e professores, um novo modelo de
    autonomia e gestão das escolas, que robusteça a autonomia financeira,
    pedagógica e de gestão de recursos humanos das escolas;
  • Publicar os resultados das provas de aferição, a nível nacional e de agrupamento,
    para fins de prestação de contas e valorização das provas;
  • Melhorar o sistema de apoio às famílias carenciadas que frequentam o ensino
    particular e cooperativo;
  • Desburocratizar o trabalho dos professores, dando-lhes autonomia, autoridade e
    melhores condições para ensinar e apoiar os alunos;
  • Adequar a formação contínua às necessidades de professores e escolas,
    valorizando a autonomia das escolas na elaboração dos seus planos de formação.

3. Natalidade

Portugal é um dos países com a taxa de natalidade mais baixa da Europa, o que compromete a sustentabilidade demográfica, social e económica. Ao longo dos tempos e por várias frentes, foram-se apontando políticas de “incentivo à natalidade”, sendo que muitas parecem só trabalhar a jusante da questão ou nem sequer gerar resposta ao problema que pretendem resolver. É até dúbio que possa haver medidas públicas desse tipo que sejam uma “bala de prata” com impacto direto numa promoção robusta da natalidade. Na verdade, reconhecendo o problema, estaremos melhor em promover políticas a montante para o resolver, nomeadamente políticas de incentivo, não à natalidade em si, mas à “emancipação” das pessoas e famílias, nomeadamente das novas gerações.

Este é um problema especialmente agudo em Portugal. Os dados do gabinete estatístico da União Europeia revelam que, de todos os Estados-membros, é no nosso País que os jovens deixam mais tarde o seu agregado familiar (em média, aos 33,6 anos). Mesmo deixando e pressupondo que se mantêm no país, as condições de instabilidade habitacional, profissional e financeira não são potenciadoras da decisão de constituir família. Promover a natalidade é, então, promover políticas transversais que criem condições de conciliação entre a vida profissional e familiar, garantam acesso à educação e ao cuidado das crianças, libertem rendimento para as famílias e promovam um mercado de habitação capaz de comportar as necessidades.

Muitas destas medidas são tratadas em temas próprios, mas não se pode deixar de apontar que, do programa da AD, devemos querer ver cumprido (pp. 60-61):

  • Garantir o acesso universal e gratuito às creches e ao pré-escolar, mobilizando os setores público, social e privado;
  • Equacionar a criação de benefícios fiscais, no âmbito da revisão do respetivo regime, para empresas que criem programas de apoio à parentalidade, como creches no local de trabalho para filhos de colaboradores, que contratem grávidas, mães/pais com filhos até aos 3 anos, horários flexíveis e outros benefícios que facilitem a vida familiar dos funcionários, contribuindo para mudar a cultura de “penalização” de progenitores pelos empregadores;
  • Concretizar gradualmente o objetivo dos sistemas fiscal e de segurança social ponderarem o número de filhos por família, incluindo vantagens fiscais para as famílias numerosas;
  • Promover a flexibilidade no local de trabalho (horários, teletrabalho, licenças parentais), permitindo que os pais ajustem os horários para melhor conciliar as responsabilidades familiares e profissionais.

4. Liberdade individual

A Iniciativa Liberal defende a liberdade individual como um valor supremo, o que implica o respeito pela dignidade, pela diversidade, pela privacidade e pelos direitos humanos de cada pessoa. Acreditamos que o Estado deve ser o garante da liberdade, mas não o seu tutor. Dois vetores essenciais para garantir as nossas liberdades passam por uma comunicação social livre e independente, por um lado, e, por outro, um Estado de Direito efetivo, com um sistema judiciário capaz de administrar justiça com celeridade e reconhecimento público.

A Iniciativa Liberal não pode deixar de estar vigilante e aproveitar para exigir que se mantenha e reforce a matriz de independência destes dois “poderes”, nomeadamente no pouco que é proposto pela AD no seu programa.

Na comunicação social (pp. 75-77):

  • Criar uma dedução no IRS de despesas com órgãos de comunicação social e introduzir modelos de incentivo ao consumo de conteúdos de órgãos de comunicação social;
  • Estudar a adoção de novos modelos jurídicos e fiscais empresariais e de investimento de impacto na área dos media, à semelhança do que já ocorre noutros Estados europeus;
  • Valorizar os meios de comunicação regional e local.

Na Justiça (pp. 78-83):

  • Desgovernamentalizar as escolhas políticas de Justiça;
  • Expandir o acesso à Justiça, especialmente para as populações mais vulneráveis;
  • Promover o estudo e um amplo debate sobre as vantagens e desvantagens da
    unificação da jurisdição comum com a jurisdição administrativa e fiscal, no sentido
    da existência de uma ordem única de tribunais;
  • Estimular a adoção de novas técnicas de gestão processual e que contribua para a
    edificação de uma cultura de eficiência nos tribunais.

5. Habitação

Por último neste percurso “olímpico”, a habitação. É um tema cada vez mais tratado no espaço político e que toca outros temas já falados, como o do crescimento do rendimento e económico ou o da “emancipação” das pessoas e famílias. De novo, é um tema que não pode depender só de uma abordagem fiscal, que pecará sempre por deficitária na recuperação de um mercado imobiliário de compra, venda e arrendamento robusto, variado e capaz de dar resposta às necessidades.

Nesse sentido, a Iniciativa Liberal pode ser diferenciadora no discurso político. Primeiro, ao trazer a perceção correta a esta questão: há um problema de mercado e é esse que devemos enfrentar; segundo, esclarecendo que esse problema de mercado surge muito mais pelo que o Estado demasiadamente impõe ou restringe, do que em necessidade de intervenção pública nesse mercado (à parte questões específicas associadas à franja da habitação social). Também aqui neste setor há necessidade de menos burocracia e menos custos de contexto (e de oportunidade).

Na nossa senda de liberalização, podemos exigir ao Governo, conforme o seu programa (pp. 176-180), a realização das seguintes medidas:

  • Flexibilização das limitações de ocupação dos solos, densidades urbanísticas (incluindo construção em altura) e exigências e requisitos construtivos;
  • Injeção no mercado, quase-automática, dos imóveis e solos públicos devolutos ou subutilizados;
  • Programa de Parcerias Público-Privadas para a construção e reabilitação em larga escala;
  • Estímulo e facilitação de novos conceitos de alojamento no mercado português;
    Estabilidade e confiança no mercado de arrendamento, nomeadamente através da revisão das contra-reformas introduzidas em 8 anos de governação socialista, e revisão e aceleração dos mecanismos de rápida resolução de litígios em caso de incumprimento dos contratos de arrendamento;
  • Revogação das medidas erradas do programa Mais Habitação, incluindo o arrendamento forçado, congelamentos de rendas (aplicandos subsídios aos arrendatários vulneráveis), e as medidas penalizadoras do alojamento local como a Contribuição Extraordinária sobre o Alojamento Local, a caducidade das licenças anteriores ao programa Mais Habitação, e outras limitações legais desproporcionais impostas pelo Governo socialista.

Antes de terminar, não posso deixar de lançar um tema extra suscitado por um dos princípios liberais mais primordiais: o princípio da subsidiariedade. Em sede da discussão orçamental que se aproxima, a Iniciativa Liberal deve aproveitar o repto lançado pela AD no seu programa (p. 41): “Adequar a Lei das Finanças Locais e demais instrumentos normativos ao processo de descentralização”, propondo uma reforma profunda das finanças locais com o objetivo de, por um lado, proporcionar maior autonomia aos contribuintes na escolha do município para alocação das suas contribuições de IRS e, por outro lado, dotar os municípios dos recursos financeiros necessários para operar de forma mais eficiente, tornando-os menos dependentes de taxas de licenciamento e de impostos sobre o património e permitindo uma melhor capacidade de resposta às necessidades das populações locais, tanto nos serviços municipais quanto nas áreas de competência transferidas.

Em suma, num cenário político-partidário especialmente desafiante, pode a Iniciativa Liberal posicionar-se e fazer a diferença exigindo ao Governo da Aliança Democrática aquilo que nos prometeu para um caminho de liberalização do Estado e do País.