Tarde, demasiado tarde, a Igreja portuguesa seguiu o caminho das suas congéneres noutros pontos do globo e decidiu-se a enfrentar às claras o horror de décadas de abusos sexuais de menores praticadas no seu interior por esse país fora.

Para mim, que sou católica e tenho aproximadamente a idade da maioria das vítimas que falaram à comissão liderada por Pedro Strecht, as descrições ouvidas na apresentação do relatório deixaram-me envergonhada e horrorizada. De repente, apercebi-me que tive a sorte de não me ter acontecido a mim. Graças a Deus, cruzei-me com bons padres e catequistas e vivi longe desta tristíssima realidade. Tive sorte, e essa sorte obriga-me a falar agora e a disponibilizar-me, como parte da Igreja que também sou, a não deixar que tudo fique na mesma. Esta é uma missão de todos os católicos, e não só da hierarquia.

Ao longo dos seus mais de dois mil anos de história, a Igreja foi caindo sempre nesta tentação de construir um edifício baseado nas capacidades e qualidades humanas dos seus membros. Só que a Igreja não é isso. Ou não é sobretudo isso. A Igreja só é Igreja enquanto comunidade de homens sustentada pela força do Espírito Santo. A Igreja instituição humana é coisa tão miserável como o são as misérias humanas. Os homens e mulheres que nalgum momento da sua vida se sentem chamados a servir a Igreja devem ser isso mesmo, pessoas ao serviço da comunidade. Não são pessoas poderosas nem gerem poder algum, o único poder no seio da Igreja é o poder redentor da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Um ato de supremo amor pelos homens.

O relatório agora conhecido, que se junta a outras histórias de horror que fomos conhecendo nos últimos anos, obriga a um longo caminho de purificação da Igreja. O ato de contrição exige afastar os suspeitos, repensar as práticas e procedimentos, redobrar o cuidado com a formação de padres e religiosos e, acima de tudo, não permitir que nada nem ninguém viva a Igreja como uma realidade solitária e oculta. Só assim a Igreja consegue voltar à sua casa, a casa de Deus.

Um pedido de perdão é devido a estas mais de quinhentas vítimas e às outras centenas que, apesar da oportunidade agora oferecida, mesmo assim, não conseguiram encontrar a força e a coragem de contar o que lhes aconteceu. Os que falaram terão provavelmente pouco conforto com os pedidos de desculpa e a compensação que a Igreja lhes venha a dar. Talvez o que mais os pacifique seja a consciência do dever cumprido e a esperança de, com o seu testemunho, terem contribuído para um caminho de purificação que agora se impõe a todos nós. Também por isso lhes é devido um agradecimento profundo. Os católicos acreditam que a sua salvação passa pela cruz de Cristo. Estas vítimas foram também crucificadas dois mil anos depois, oxalá o seu sofrimento seja também para eles sinal de ressurreição.

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