No segundo desta trilogia de artigos opinativos (que ora encerro), demonstrei que a nossa Constituição escrita já não se encontra adaptada às exigências próprias de um mundo profundamente distinto do que existia em 1976. Mas isso não implica, de modo nenhum, uma opção pelo regresso aos autoritarismos próprios de quem não sabe discutir ou tolerar quem pensa diferente. Nem, muito menos, a imposição de uma cartilha de populismo penal, de acordo com a qual tudo se resolve com punho-de-ferro e cárceres cheios.

Mais do que regredir, a Constituição tem de avançar. Sempre no sentido do reforço de um modelo tolerante e integrador, que promove a reconciliação e não o ressentimento.

6 Uma Constituição para a Justiça: Não há sentimento de pertença e de agregação social sem que exista uma profunda crença na capacidade de a Justiça impor e repor o cumprimento das normas que garantem a igualdade social. Ser igual não é ser idêntico. É ser diverso mas merecedor de igual respeito pelo Estado e pela comunidade a que se pertence.

Ora, o que vemos, hoje, é que o acesso à Justiça é negado aos que pouco podem e é aproveitado pelos que tudo têm. Os tribunais não podem ser um instrumento ao serviço de quem manipula o sistema judiciário, usando os seus alçapões e custeando, a peso de ouro, quem lhes abre a porta, através do uso e abuso de expedientes processuais. Porém, no sentido inverso, também não é aceitável que os tribunais se refugiem, sucessivamente, em formalismos, de modo a exonerarem-se do conhecimento efetivo das questões que reclamam decisão. Não decidir, quanto ao mérito, confunde o cidadão – que não percebe por que razão só se discutem preciosismos jurídicos – e gera uma sensação preocupante de injustiça e de impunidade.

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A Constituição precisa, portanto, de ser corrigida, servindo-se das lições extraídas durante os últimos anos de assoberbamento dos tribunais. Deve-se, portanto:

  • Incluir na Constituição uma norma que imponha o princípio da primazia da prolação de decisões de mérito – à semelhança do que já sucede na jurisdição administrativa –, de modo a que os tribunais (e os advogados, que o promovem) não se refugiem em expedientes e tecnicalidades processuais, que apenas visam impedir o conhecimento de fundo sobre as questões colocadas. Maus exemplos disso são as decisões de não conhecimento dos pedidos, com fundamento em questões formais ou de interpretações rigorosas sobre prazos, os excessos formalistas da jurisprudência do Tribunal Constitucional, a disparidade quanto às consequências do incumprimento de prazos processuais – que são (erradamente) tidos como meramente indicativos para os tribunais, quando são obrigatórios e preclusivos para os particulares. Ao contrário, devem os tribunais promover a sanação do incumprimento de regras formais e dar prevalência ao conhecimento sobre as questões de mérito;
  • Reforçar o direito ao recurso, em especial em matéria criminal, colocando termo a uma vertigem de retirada de direitos fundamentais aos cidadãos, potenciada por um discurso de populismo penal que é contraditado, diariamente, pela diminuição consecutiva dos números da criminalidade. Só quem não anda nos tribunais é que pode achar que há, hoje, um abuso do direito ao recurso. A circunstância de os tribunais não disporem dos meios necessários ao julgamento atempado de processos não pode constituir desculpa para uma limitação excessiva e, portanto, desproporcionada do direito elementar a ver determinada questão sindicada por, pelo menos, duas instâncias diferentes. Imaginem o que seria dizer-se que, como o Sistema Nacional de Saúde não dispõe de recursos suficientes, os doentes não deveriam ter direito a uma segunda opinião médica ou à realização de mais exames médicos e clínicos de diagnóstico;
  • Garantir a colegialidade das decisões de tribunais coletivos, evitando-se o espetáculo de assistir a membros de colégios judiciais a alegar que apenas assinaram de cruz ou que não conheciam o teor do acórdão que subscreveram, por apenas terem aderido à autoridade académica e judicial de um/a colega de coletivo;
  • Reforçar o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais, de modo que se impeça a fundamentação mediante mera adesão aos argumentos da decisão recorrida ou das alegações do Ministério Público, bem como a fundamentação resumida a uma cópia despudorada (“copy paste”) de decisões anteriores ou mediante invocação de jurisprudência anterior sem conexão direta com o caso a decidir;
  • Eliminar a pena de prisão como paradigma da sanção penal, substituindo-a, a título principal, por penas de trabalho a favor da comunidade ou por penas de imposição de condutas (como o acompanhamento psicológico, a reinserção fora do ambiente prisional e a proibição de exercício de profissões ou de outras condutas). Na verdade, é falso que o cumprimento efetivo de penas de prisão contribua para a paz social ou para evitar a reincidência na prática de crime. Todos os estudos e relatórios internacionais apontam para taxas excessivas de encarceramento, em Portugal; em especial, no caso da aplicação da prisão preventiva. Mais demonstram esses estudos que a taxa de reincidência em anteriores condenados é elevadíssima. O que demonstra que a prisão é, por si só, uma escola de crime e uma armadilha que impede os reclusos de se reabilitarem e reintegrarem na comunidade a que sempre pertenceram. Reduzir ao mínimo a pena de prisão é, assim, evitar a eternização de ciclos de criminalidade associados à pobreza e à falta de opções de vida futura. Assim, a detenção privativa da liberdade deve ser sempre temporária e excecional, quer para reação a picos emocionais criminógenos – é certo que até uma criança beneficia quando é enviada, pelos pais, de castigo para o quarto, até que se acalme –, quer para permitir um período formativo de reabilitação social e de reorientação.

7 Uma Constituição para a Cidadania: O nosso regime político padece de dois males indesmentíveis. Primeiro, alcançou um descrédito inigualável junto dos cidadãos, que se resume à recusa em aceitar a eternização no poder de uma casta de profissionais da política, que alterna, rotativamente, mas que não abandona o poder desde o início da nossa democracia, há mais de 40 anos. Segundo, afastou todas as pessoas que pudessem ter vocação pública, quer por culpa própria dos que monopolizam as sedes partidárias, quer por excessiva demonização da política (pelas redes sociais, pela sobre-exposição mediática e pelo modo como alguma comunicação social acentua a sua dimensão caricatural). Por conseguinte, não só as pessoas comuns se afastaram da política, por não se reconhecerem em quem exerce cargos políticos, como essas mesmas pessoas comuns (aqui incluídas as que são reconhecidas pelo seu mérito, nas atividades a que se dedicam) se recusam a exercer cargos públicos, por não pretenderem ser arrastadas na lama e no lodaçal próprio da exposição contemporânea da vida pública.

Para reconquistar a confiança perdida, há que deixar de lado pruridos ideológicos – e, ainda mais importante, interesses partidários – e reconhecer que é preciso:

  • Impor um limite de 2 mandatos consecutivos para os titulares de órgãos deliberativos, o que estimularia a renovação de quem exerce tais cargos. Recorde-se que o artigo 118.º, n.º 2, da Constituição, apenas impõe a limitação de mandatos em cargos executivos;
  • Reduzir o número de Deputados para um máximo de 181, desde que adotados mecanismos corretivos que mantenham a proporcionalidade do sistema, tal como um círculo nacional de compensação, a redução do número de círculos eleitorais – extinguindo os círculos distritais e adaptando-os à nova organização administração administrativa em 5 NUTS II e mais os círculos dos Açores, da Madeira, da Europa e de fora da Europa – ou o abandono do método da média mais alta de Hondt. Aliás, noto que o artigo 148.º da Constituição já permite a redução do número de Deputados para 180, sendo que tal já seria possível caso fosse revista a Lei Eleitoral, que carece de maioria de 2/3 dos Deputados. Assisado seria que se fixasse o número de Deputados em número ímpar (181 ou 179), de modo a evitar episódios absurdos como o do Queijo Limiano, por força da possibilidade de empate entre o partido maioritário e todos os demais;
  • Recusar a inserção de círculos uninominais, que, ao invés de promoverem maior proximidade, apenas reforçam o caciquismo local e o nepotismo no acesso a cargos políticos, através da manipulação dos apoios locais e da instrumentalização de recursos económicos e mediáticos para financiamento de campanhas. A eleição dos nossos representantes não deve ser um circo mediático e uma fogueira das vaidades, mas antes uma discussão ponderada acerca dos programas políticos, económicos, sociais e culturais que pretendemos ver implementados no nosso país;
  • Fixar limites ao regime dos gabinetes governamentais e vedar a sua extensão a outros órgãos políticos de pessoas coletivas pública infraestaduais (em especial, as autarquias), com vista a evitar a proliferação de comissários políticos que acedem a cargos na administração pública, sem passar por concurso público, conforme exige o artigo 46.º da Constituição. Será tolerável que vereadores de câmaras municipais e que presidentes de juntas de freguesia continuem a dispor de chefes de gabinete, adjuntos, assessores, secretárias e motoristas, como se multiplicassem pelo país milhares de minigovernos? Faz sentido que a administração pública não disponha de técnicos especializados e de serviços apetrechados e, depois, se criem fictícias unidades de missão, apenas para que os seus coordenadores e membros sejam equiparados a membros de governo e se furtem às regras financeiras e organizacionais aplicáveis à administração pública?;
  • Impor o uso de tecnologia livre (“open source technology”) nos órgãos políticos e na administração pública, de modo a evitar a completa e absoluta dependência externa do Estado face a fornecedores privados e estrangeiros. Se outrora, Karl Marx aludia à concentração capitalista, como estado antecedente à revolução popular, hoje, na verdade, o que verificamos é uma preocupante concentração tecnológica, que ameaça a soberania nacional. Esta dependência da administração pública destes gigantes tecnológicos gera corrupção, falta de transparência e concorrência desleal nos concursos públicos, pois os respetivos cadernos de encargos são feitos à medida das caraterísticas tecnológicas dos produtos e serviços a contratar (“taylor-made procurement”), como até incrementam o risco de violação do segredo de Estado e de deturpação da escolha e decisão democráticas. Basta ver os episódios de espionagem (e de intervenção) russa ou os riscos do uso de tecnologia fornecida por uma empresa controlada por um Estado totalitário, como é o caso da Huawei.

8 Uma Constituição para mais um século: Em suma, não é apenas a Direita que quer uma nova Constituição. Também a Esquerda – isto é, todos aqueles que se reveem na ideia social-democrata de que devem ser os parlamentos, democraticamente eleitos, a promover a melhoria constante do bem-estar daqueles que progridem pelo mérito do seu trabalho e do seu esforço (e não pela sua origem ou nascença) – deve querer rever a Constituição de 02 de abril de 1976.

Uma Constituição de Futuro não é – nunca pode ser – um projeto acabado. Ou dogmático. Ou reacionário. Ou de mera sobrevivência. As conquistas do 25 de abril de 1974 devem ser aprofundadas. Ampliadas. Renovadas. Celebradas.

Só se celebra aquilo que nos motiva. Aquilo que nos faz vibrar. Aquilo que nos dá felicidade. É fundamental que as novas (e vindouras) gerações se continuem a rever no projeto de Liberdade e de transformação que representou a Constituição cujo aniversário agora se comemora.

Não é o medo da mudança que nos deve tolher. É a esperança da renovação que nos deve fazer avançar.