A eleição de Xavier Milei para Presidente da Argentina e a vitória do partido de Gert Wilders nas eleições parlamentares holandesas são sinais de que qualquer coisa de novo e profundo está a acontecer no mundo euro-americano.

A reviravolta na Europa e nas Américas começou com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos – fez agora sete anos –   e prosseguiu com o triunfo de Bolsonaro; enquanto na Europa Central se mantinham e renovavam os governos nacionais-conservadores de Viktor Orbán, na Hungria, e dos polacos do Lei e Justiça. Depois veio a vitória de Giorgia Meloni, que começou a vida política, ainda adolescente, na Frente da Juventude do MSI e fez todo o trajecto do partido de Almirante até aos Fratelli d’Italia e à coligação de direita que agora governa a Itália (passando pela Alianza Nazionale, com Fini, e depois pela coligação com a Forza Italia de Berlusconi).

Hoje, em 15 Estados da União Europeia os partidos a que alguns media chamam de “extrema-direita”, dos Democratas Suecos ao Rassemblement National francês (“União Nacional” em português), têm mais de 20% do eleitorado. A Esquerda, as esquerdas, o Centro, os centros e até as “direitas moderadas” dizem-se alarmados com semelhante tendência, mas têm dificuldade em explicá-la nos termos tradicionais, isto é, recorrendo à tese da ligação “Fascismo-Grande Capital” ou detectando na ascensão da Direita, ou melhor, da extrema-direita, o dedo invisível do imperialismo. Infelizmente, o “Grande Capital”, o capital tentacular, globalista, financeiro, tende hoje a alinhar com emoção e carinho no mundialismo, no multiculturalismo, no wokismo – as agendas pós-neo-marxistas que sucederam às tradicionais, organizadas em torno de notórios benfeitores da Humanidade como Trotsky, Mao ou Lenine. Quanto ao imperialismo – americano, supõe-se –, tanto quanto se sabe está ao serviço da Administração Joe Biden-Kamala Harris, uma Administração eminentemente progressista quando não francamente wokista.

As causas das coisas

Mas, maniqueísmos e teorias da conspiração à parte, o que é que realmente há de comum em todas estas vitórias ou subidas da “extrema-direita” e seus caudilhos?

A primeira característica comum é que exprimem uma rejeição do que está, recusando a alternativa, muito particularmente nas bipolarizações em eleições presidenciais: em 2016, nos Estados Unidos, Trump era alternativa a Hillary Clinton, uma representante do establishment liberal chic da Costa Leste, de onde, de resto, vinha o próprio Trump, que, entretanto, aparecia como a voz dos descontentes do Sul profundo e do Nordeste desindustrializado, bem como de outros “deploráveis”.

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O globalismo teve esse efeito: procurando espaços geopolíticos de mão de obra barata e com poucos direitos, contando com a cumplicidade dos políticos dos partidos tradicionais, já sem União Soviética nem China fechadas ao investimento, com a bênção do capital financeiro mais ou menos anónimo, as indústrias debandaram para as periferias baratas, graças também à total indiferença dos políticos norte-americanos e europeus em conter a debandada. E do mesmo modo que permitiram e até encorajaram a desindustrialização, permitiram e encorajaram a entrada de imigrantes oriundos de culturas dificilmente assimiláveis e que, por isso, foram criando comunidades estranhas aos países de acolhimento.  O alheamento ou o divórcio destes governantes, ou das “elites”, da realidade vivida pelo povo e os casos de compadrio e corrupção tornados públicos acirraram a hostilidade popular.

Foi este o fenómeno que levou à subida em flecha das votações na “extrema-direita” em países como a Suécia, a Finlândia, a Suíça e agora os Países Baixos.

A sensação de perda de identidade ou de “chão”, a descaracterização do território de enraizamento ou pertença causada pela imigração não integrada, tem também, em Espanha, expressão na ameaça à integridade do território nacional causada pelos separatismos. E a reacção pouco firme do leque político tradicional às pretensões separatistas é, ali, uma das principais causas da ascensão de um partido nacionalista como o Vox.

Por outro lado, também as forças políticas tradicionais, num reflexo de defesa perante a perda progressiva de eleitorado, tendem a reagir emocionalmente e atavicamente – disparando teses conspiratórias desfasadas, alertando para os perigos das novas formas de comunicação, do populismo, da manipulação, e até propondo “cortar a liberdade aos inimigos da liberdade” para por fim ao “discurso de ódio”, “salvar a democracia” e impedir “o regresso do fascismo”.

Não seria a primeira vez que em Portugal, a Esquerda, paladina oficial das liberdades, recorria a métodos de supressão da liberdade para defender a Liberdade ou de cancelamento da democracia para defender a Democracia: fê-lo ao longo da Primeira República democrática e voltou a fazê-lo já na Terceira República, entre 28 de Setembro de 1974 e 25 de Novembro de 1975.

De Buenos Aires a Haia

Não deixa de ser curioso o desaparecimento da Direita da narrativa jornalística. Subitamente, como no jogo do Monopólio, passa-se do Centro, ou quando muito do centro-direita, à extrema-direita, sem passar pela “casa da Partida”. A Esquerda (que não tem extremos) quando ganha, ganha sempre à “extrema-direita”, e quando perde, perde sempre para a “extrema-direita”, perigosa horda iliberal e anti-democrática sufragada por um povo manipulado por “populistas”.

As últimas perdas deram-se na Argentina e nos Países Baixos. Na Argentina, com a vitória de um académico excêntrico, arqui-liberal e libertário.  Xavier Milei é, de certo modo, um discípulo de Murray Rothbard, o economista da Escola Austríaca que, nos anos 70, fundou nos Estados Unidos o Libertarian Party, dirigiu o Libertarian Forum e foi co-fundador, com o bilionário Charles Koch, do Cato Institute.

Milei, também ele economista e defensor das teses do Estado minimalista, um Estado restrito às funções da soberania – Defesa, Negócios Estrangeiros, Segurança e Justiça –, encontrou uma janela de oportunidade no caos económico da Argentina, governada no século XXI por Nestor Kirchner, presidente de 2003 a 2007, e Cristina Kirchner, presidente de 2007 a 2015 e vice-presidente de 2019 a 2023.

Os Kirchner, Nestor e Cristina, proclamavam-se peronistas. A etiqueta peronista, na Argentina, tem servido para quase tudo, com peronistas de esquerda, de direita, de extrema-esquerda, de extrema-direita e até do centro. Peron foi Presidente de 1946 a 1955 e a sua primeira mulher, Eva, Evita, foi decisiva na construção da sua imagem de caudilho popular, capaz de trazer esperança aos “descamisados”. Depois de derrubado pelos militares, Peron viveu no exílio em Madrid. Regressou à presidência em 1973 e morreu em Julho de 1974; também fizera da segunda mulher, Maria Estela, vice-Presidente e fora ela que lhe sucedera até ser derrubada pelos militares no golpe do general Videla em Março de 1976.

Desde a restauração democrática, em 1983, só dois presidentes – Raul Alfonsin e Fernando de la Rua, ambos do Partido Radical – não foram peronistas. E também nenhum dos dois terminou o mandato em tempo normal.

Nestor e Cristina Kirchner adoptaram a moda dos casais e das dinastias democráticas, na senda da famosa frase de Bill Clinton na campanha presidencial de 1992: “Buy one, get one free” (referindo-se às qualidades políticas de Hillary que, supostamente, o ajudaria a governar).

O casal Kirchner governou a Argentina com uma geringonça ideológica de peronismo e progressismo de esquerda na coligação Frente para La Victoria, que deixou o país na miséria e no caos económico. Por isso Milei ficou à frente em 21 das 24 províncias argentinas e foi, em 40 anos de pós-ditadura militar, o vencedor com maior margem numa eleição presidencial: 55,65% dos sufrágios contra os 44,35%  de Sergio Massa, o peronista vencido.

Bem vai precisar dessa maioria para enfrentar um Congresso maioritariamente hostil e para legitimar as reformas radicais que quer levar por diante. Milei é um ultra-liberal em economia, mas um conservador em valores: é anti-aborto e anti-eutanásia. Como é também simpatizante declarado de Trump e de Bolsonaro, Biden e Lula declinaram estar presentes na sua posse, a 10 de Dezembro, que promete ser um happening das direitas nacionais e libertárias (que não são uma nem a mesma coisa). Entretanto, apesar de Milei, na campanha, ter tratado de modo grosseiro o Papa respondendo a uma crítica do Sumo Pontífice, Francisco não hesitou em telefonar-lhe a felicitá-lo pela eleição. Falaram cerca de dez minutos, numa “conversa amena” sobre a pobreza na Argentina e os planos do Presidente eleito na área social.

A fragmentação holandesa

A vitória de Wilders e do seu Partido da Liberdade nos Países Baixos traduziu-se em 37 dos 150 lugares do Parlamento. O Partido da Liberdade é crítico da imigração muçulmana incontrolada. Entretanto, para governar, Wilders precisa de conseguir uma aliança com outras forças políticas de direita e centro-direita.

Num parlamento como o holandês, muito dividido e subdividido em partidos, as negociações para a formação do Executivo costumam ser demoradas: Mark Rutte, em 2021, levou 299 dias a negociar a coligação governativa. Para chegar à maioria absoluta (76 deputados), além dos votos de 11 deputados de outros partidos de direita identitária, Wilders espera conseguir o apoio do Partido Popular para a Liberdade e Democracia, de Dilan Yesilogz, e do recém-formado Partido do Novo Contrato Social, de Peter Omtzigt. Nestas negociações, que devem ser longas, Wilders – que já manifestou a sua vontade de ser “líder de todos os holandeses” (e não “só dos holandeses de bem”) – terá de deixar cair algumas das suas pretensões, como a proibição de mesquitas no país, medida manifestamente anticonstitucional, ou a realização de um referendo sobre a saída dos Países Baixos da União Europeia.

Irá Wilders, inspirando-se no dito de Henrique IV de França e III de Navarra, dizer que “o governo da Holanda vale bem uma mesquita” e negociar? Tudo leva a crer que sim, que o “exacerbado líder radical de extrema-direita” desista de “instaurar o fascismo” na Holanda e se renda às alegrias da moderação e ao pragmatismo da cedência democrática.