Em Junho escrevi, a propósito da decisão do Supremo Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, um texto que partiu da observação das reacções da classe política portuguesa, em que a generalidade da qual aproveitou a ocasião para exibir aquela virtude fácil que a caracteriza. Como era de esperar, nenhum político voltou a referir-se ao assunto o que, dado o absurdo daquilo que disseram, é bem capaz de ser o melhor. Como também ali escrevi, salvo a extrema-esquerda, nenhum partido está verdadeiramente interessado em tocar na questão, que esperam ter ficado finalmente resolvida em 2007, à segunda tentativa.

A lei vigente em Portugal permite o aborto por opção da mulher, até às 10 semanas. Com a excepção da Polónia, este prazo é o mais curto na Europa. Dado que nem as forças políticas da social-democracia nem as do liberalismo, nem sequer as do conservadorismo estão realmente interessadas em abrir essa Caixa de Pandora, a condenação infantil e apressada da abolição do acórdão Roe v. Wade nos Estados Unidos foi um tiro no pé. Entrega à extrema-esquerda a oportunidade de legislar sobre este assunto, já que faz dos partidos da esquerda moderada, PS e IL, prisioneiros das suas próprias palavras (admitindo que os partidos têm palavra), como aliás também sucedeu com a questão da eutanásia. Nunca é demais repetir que a revogação de Roe v. Wade não proibiu o aborto nos Estados Unidos. É uma oportunidade para que cada estado decida, de acordo com as preferências da maioria e as diferenças culturais e religiosas, nalguns casos profundas, entre regiões. A decisão não é perfeita, mas num caso em que existem dois direitos irreconciliáveis, é a pior solução com a excepção de todas as outras. Foi a solução na maior parte dos países ocidentais. A sensação de que à esquerda não existe um discurso coerente para opor aos que polarizam a sociedade ficou bem patente nas declarações de Ana Gomes, ex-candidata à Presidência da República e voz activa da Social-Democracia-Socialista quando se debatem questões sociais. Afirmou a Dra. Gomes que, com esta decisão, os Estados Unidos estão a voltar para trás 200 anos.

Coincidentemente, a primeira lei que regularizou o aborto nos EUA tem 200 anos. É de 1821, do estado de Conneticut, mas foi no sentido de o proibir. Fica a dúvida se a ilustríssima se referia à de há 200 anos para trás ou para a frente. Pelo tom de voz parecia a primeira – “nos tempos da Inquisição” – disse, mas o desenvolvimento histórico ajusta-se mais à segunda. A ilusão óptica é alimentada pela crença na inexorabilidade do progresso. Como se o progresso fosse algo inevitável e dependente da defesa constante de determinadas ideias universais. Em relação à inevitabilidade do progresso aí estão as pirâmides para recordar o contrário, em relação à constância das ideias detrás desse progresso, está sempre envolta num véu de ignorância e incerteza.

O aborto provocado pela própria mãe ou a pedido desta é uma realidade em todas as sociedades. Isso não significa que a sua prevalência e aceitação tenha sido igual em todos os lados. A tolerância ao acto por parte da sociedade depende de factores sociais, políticos, tecnológicos e económicos, incorporados consciente ou inconscientemente nas crenças dos indivíduos. Nos Estados Unidos, como no resto do Ocidente essas crenças evoluíram de um tronco comum de tradição cristã. O Cristianismo é em parte continuação, em parte oposição, à Antiguidade Clássica. Na legislação romana, anterior ao Cristianismo, o feto era simplesmente ignorado, não sendo considerado uma pessoa. Os primeiros cristãos rejeitaram essa interpretação da realidade. Dos escritos que nos chegaram deduz-se que favoreciam a hipótese (Pitagórica?) de que a alma era infundida no corpo no momento da concepção. O aborto provocado, para os primeiros cristãos, estava assim equiparado a um infanticídio. Mas logo a partir do século III, começam a encontrar-se autores que defendem que a infusão da alma se dá num momento posterior. Dada a ignorância a este respeito, confessada pelo próprio Santo Agostinho, na prática a penitência do crime nunca se equiparou à de um infanticídio. Em suma: com o Cristianismo, provocar um aborto, pelo menos a partir do momento em que o feto está formado, passou a ser considerado, se não um crime, pelo menos um pecado grave e a sua prática eticamente censurável.

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Esta ideia de infusão tardia de uma alma racional foi reforçada durante o medievo entre os escolásticos sob a influência explícita de Aristóteles. São Tomás de Aquino adoptou a hipótese aristotélica de que a infusão sucedia 40 dias depois da gestação. Com o abandono da ciência aristotélica, a partir da revolução científica do século XVII, os teólogos católicos também começaram a pôr em causa a infusão tardia. Mas passou pelo menos um século até esta opinião vingar dentro da Igreja Católica, e dois até ser promulgada a excomunhão para abortos praticados por qualquer motivo e em qualquer momento da gestação. Sucedeu só em 1869, com o Papa Pio XI, quando os avanços científicos já deixavam claro que a gestação era um continuum desde a fecundação.

Os protestantes em geral seguiram a tradição cristã vigente antes do cisma pelo que, na idade moderna e até ao século XIX, o aborto nos EUA estava normalmente permitido até à primeira percepção materna dos movimentos fetais. Assim se transmite na common law inglesa adoptada pelos norte-americanos. Só a partir desse momento o aborto constituía um crime. Ainda hoje a maioria dos defensores da legalização do aborto nos Estados Unidos (e muito provavelmente na Europa) considera que a fase na gestação deve ser um factor que determina a legalidade. Esta opinião popular é coerente com o grosso da tradição cristã protestante até aos anos 70-80 do século XX. Nem todas as denominações protestantes são contrárias ao aborto nos Estados Unidos, mas actualmente constituem a principal oposição. Não era assim em 1973 quando os principais opositores eram os católicos e os progressistas defensores do Estado Social.

Em 1973, o Supremo Tribunal decidiu que as mulheres norte-americanas tinham o direito constitucional a abortar livremente durante o primeiro trimestre da gravidez, 14 semanas, e a conselho médico no segundo (28 semanas, reduzidas em 1992 pelo acórdão Planned Parenthood v. Casey a 23-24 semanas, dependendo da viabilidade do feto). De acordo com o National Center for Biotechniology Information, o movimento fetal começa a ser sentido entre a 16ª e a 22ª semana. Constatamos assim que foi com Roe v. Wade que a legislação recuou os tais 200 anos. E o que para a Dra. Gomes, e para muita gente à esquerda, é a tendência do progresso – a liberalização para qualquer prazo – é uma legislação que há 1800 anos deixou de existir no Ocidente, e com bons motivos.

Ainda que hoje o principal factor que divide a sociedade norte-américa entre pró e anti-aborto seja a confissão religiosa (os protestantes evangélicos são os principais opositores, enquanto a opinião dos católicos se divide), durante o século XIX os protestantes, como vimos antes, não se incomodavam especialmente com o aborto antes do movimento fetal que, além do mais, se definia de uma maneira suficientemente vaga para permitir a prática, já bem avançada a gravidez. Foram os avanços científicos durante a primeira metade do século XIX que permitiram perceber que o feto está vivo antes de se começar a mexer dentro do útero e que a gravidez é um processo contínuo desde a fertilização. Isto levou a que muitos médicos se escusassem e condenassem a prática do aborto como contrária ao seu código deontológico. É a partir de meados do século XIX que as elites progressistas começam a defender que a legislação restrinja a prática, até porque em muitos casos era efectuada por curandeiras através do recurso a mezinhas, num total desrespeito pela ciência médica cientificamente contrastada, e com risco para as mulheres que se submetiam ao processo (curiosamente a aceitação do aborto na URSS depois da Revolução Russa também se deveu à incapacidade de impedir o aborto em condições de fome e miséria – as restrições voltaram em 1924 e em 1935 só se permitia nos primeiros 3 meses por motivos de saúde). Ao invés do que nos ensina o catequismo progressista actual, não foi o sentimento religioso mas o racionalismo científico e progressista dos liberais da segunda metade do século XIX a impulsar as restrições à prática do aborto. Não é coincidência que só por esta altura, 1869, a Igreja Católica tenha definitivamente adoptado no Direito Canónico a doutrina da total proibição baseando-se, como habitualmente, na opinião científica dominante.

Para além da questão científica, as elites liberais e progressistas americanas promoveram a proibição do aborto por uma questão social, curiosamente muito relacionada com os direitos das mulheres. Até meados do século XIX eram as mulheres solteiras a braços com uma gravidez comprometedora as que maioritariamente se submetiam ao aborto. Até que ponto este aborto era verdadeiramente desejado e não condicionado por questões económicas e pela pressão social eram aspectos que tocavam fundo na sensibilidade liberal, como se pode depreender da literatura da época. Mas a partir de meados do século XIX os motivos passam a ser sociais, o número de abortos não só aumenta, como as casadas passam a representar cerca de metade dos casos médicos documentados. Para as feministas oitocentistas, em particular as mais radicais, a prática era condenável porque consideravam ser uma imposição dos maridos às suas mulheres. Estes podiam continuar a forçá-las a ter relações sexuais sem consequências de peso para a sua situação económica.

A partir do século XX as feministas começam a mudar de opinião a este respeito, mas os liberais, em particular os convertidos à social-democracia, opunham-se ao aborto não só porque reconheciam no embrião um indivíduo de pleno direito, mas também porque a prática permitia ao Estado eximir-se da obrigatoriedade de construir uma rede social ampla que amparasse tantas famílias e crianças. O Partido Democrata só se converteu em defensor dos argumentos pro-choice a partir das eleições de 1976, três anos depois de Roe. Jimmy Carter, eleito Presidente esse ano, sempre se manifestou contra a prática, excepto nos casos mais extremos. Walter Mondale, segundo classificado na Convenção e Vice-Presidente com Carter, apoiou Roe v Wade por motivos constitucionais, não por estar de acordo com a prática, comprometendo-se a votar sempre contra a atribuição de fundos públicos, algo que, por certo, também foi a posição de Joe Biden enquanto ainda sabia onde estava e para onde o levavam. Ellen McCormack, também candidata em 1976 e a primeira mulher a receber fundos federais para uma candidatura presidencial, concorreu exclusivamente com o apoio das organizações pró-vida. Longe se ser uma excentricidade, esta era a posição comum dos políticos democratas, quer dizer, de esquerda, nascidos antes do Baby Boom.

Foi a geração dos baby boomers (não por acaso a da Dra. Gomes), a primeira das chamadas progressistas que começou a exigir maioritariamente a liberalização do aborto, numa óptica de permitir maior liberdade às mulheres sobre o seu próprio corpo. Para as elites culturais a partir desta geração a liberdade do indivíduo passou a significar exclusivamente a liberdade da mãe. A partir de 1970 a sociedade anuiu parcialmente, geralmente permitindo totalmente a prática durante uma fase inicial e proibição total, excepto para casos de risco comprovado, numa fase final da gravidez. Existiram vários motivos, alguns mais razoáveis (o risco associado a um aborto ilegal num quadro legal muito restritivo como foi o do pós-guerra, parece ter duplicado a taxa de mortalidade materna comparada com a prevalente nos anos 30, ainda que, em termos absolutos, o número de mulheres que faleceram por esta causa tenha reduzido substancialmente no mesmo período) e outros menos razoáveis (a questão da superpopulação do mundo e o apoio de organizações como a Association for Voluntary Sterelization ou a Zero Population Growth – hoje conhecidas pelos nomes bastante mais eufemísticos Engender Health e Population Connection – e que estiveram na fundação da NARAL Pro-Choice America), mas isso é um tema que ficará para uma próxima ocasião, já que é parte de um tema mais amplo: as causas da decadência do Progressismo – de um movimento arrogantemente racionalista, defensor da proibição do aborto, a um fervorosamente religioso incapaz de qualquer discussão racional.