Em Janeiro de 2021, António Costa acusou Miguel Poiares Maduro e Paulo Rangel de liderarem uma campanha internacional contra Portugal. Estava em causa a indicação do Procurador Europeu, tendo sido designado um candidato que, apesar de classificado em segundo lugar pelo comité de selecção europeu, acabou por ser escolhido por imposição da Ministra da Justiça. Não sem antes ter sido alterado o curriculum do candidato, alterações essas justificadas como “lapsos”. O primeiro-ministro disse que o assunto não tinha qualquer relevância (estamos a falar de falsificar um curriculum pelo Ministério da Justiça que, entre outras atribuições, tutela os registos e o notariado, bem como outras profissões jurídicas…) e só foi capaz de dizer que Rangel e Poiares Maduro lideravam uma campanha internacional contra Portugal.

Vem isto a propósito da insólita Carta dos Direitos Humanos na Era Digital, aprovada no Parlamento e publicada em Diário da República em meados de Maio (Lei n.º 27/2021 de 17 de Maio). Não houve um único deputado que tenha votado contra. E o Presidente da República promulgou.

A Carta estabelece um conjunto de direitos humanos na “era digital”. Todavia, o mais inusitado é o que consta do artigo 6.º, sob a epígrafe “protecção contra a desinformação”. Resumidamente, reza assim o preceito: o Estado assegura o cumprimento em Portugal do “Plano Europeu de Ação contra a Desinformação”, por forma a proteger a sociedade contra a desinformação, considerando-se desinformação “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos”.

É uma norma repleta de conceitos vagos e indeterminados onde pode caber, hipoteticamente, tudo. Dito sem rodriguinhos, isto é a legalização da censura, com a justificação de que é para a nossa protecção. Aliás, não é muito diferente do que dispunha a lei da censura no Estado Novo. Como dizia um Decreto de 1943: “Sempre que se publique, edite, reedite, venda ou distribua qualquer escrito lesivo dos princípios fundamentais da organização da sociedade ou prejudicial à defesa dos fins superiores do Estado poderá o Ministro do Interior […] ordenar que junto das empresas responsáveis, e à custa destas, funcionem delegados do Governo”. Salazar dizia, pois, que a censura “é um mal necessário”. Também não é muito diferente da propaganda na União Soviética, onde um órgão censório se encarregava de eliminar a imprensa incómoda e de garantir que a ‘versão ideológica correcta’ seria veiculada em todas as publicações. Com efeito, face à lei agora publicada, toda a crítica pode, potencialmente, enquadrar-se num prejuízo público (o caso do Procurador Europeu, quando António Costa sustentou que as críticas sobre esse processo estavam a prejudicar a imagem do país na União Europeia, é um desses casos).

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Com esta Carta, confere-se a um organismo estatal o poder de decidir o que é verdade e o que é falso e, mesmo sendo verdade, basta ser uma “narrativa” que possa causar “prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos” para ser censurada! De sublinhar também o regime sancionatório: o n.º 5 desse artigo 6.º prevê o direito de apresentar e ver apreciadas pela ERC queixas contra as entidades que “pratiquem os atos previstos no presente artigo” (a tal “desinformação”), sendo aplicáveis coimas que poderão ir até aos 250 mil euros.

Isto surge na sequência de alguns documentos da União Europeia sobre a segurança no ciberespaço, mas desenganem-se os que pensam que há alguma obrigação de transpor uma qualquer Directiva europeia. Não há. Por isso, o próprio n.º 1 do artigo 6.º não sendo falso, é enganador ao fazer referência ao “Plano Europeu de Ação contra a Desinformação”.

Dito isto: Fake news sempre houve, discurso de ódio sempre houve, propaganda sempre houve (veja-se os actuais manuais de História de Portugal do ensino secundário para ver como se conta a história às crianças). Por outro lado, pese embora a natureza particular do ambiente do ciberespaço, os princípios e as regras que lhe são aplicáveis não são muito diferentes do mundo off-line: crime é crime, insulto é insulto, difamação é difamação, agressão é agressão e têm consequências penais e mecanismos próprios de reacção em tribunal.

Num mundo ideal e perfeito (que a esquerda geralmente aspira alcançar), o ciberespaço seria um espaço de excelência, aproveitado para debates polidos, cultos, profundos e interessantes, onde as pessoas, civilizadamente, exerciam de forma responsável a sua liberdade de expressão. Sabemos que a realidade não é assim. O que assistimos é que há um equivalente à “conversa de café”, levada ao extremo, por vezes sob a capa do anonimato e do perfil falso. Além disso, a informação circula a uma velocidade estonteante e irresistível. Mas isto não legitima a legalização da censura!

Esta lei, em particular o tal artigo 6.º, é uma forma de autoritarismo contemporâneo: o estado providencial, que toma conta dos cidadãos indefesos e inaptos que não conseguem gerir nem avaliar a informação que é apresentada. Recorde-se que a censura sempre foi justificada como sendo um mal necessário para o bem da população. Porém, as notícias falsas ou enganadoras são parte integrante da liberdade de expressão e proibi-las é um instrumento para vigiar os cidadãos, a pretexto da nossa segurança. De nada nos vale bater fervorosamente no peito a dizer que somos pela liberdade para depois deixar passar, sem coerência ou consistência, uma lei destas. A liberdade é como as plantas: tem de ser regada todos os dias.

Se a Carta entrar em vigor (tem uma vaccatio legis de sessenta dias e ainda tenho esperança que os nossos deputados reparem o erro em que incorreram), sugiro, desde já, (assim de cabeça e a título meramente exemplificativo) que se comece por apreciar e “punir” as seguintes narrativas manifestamente falsas ou enganadoras:

  • o anúncio da vinda do INFARMED para o Porto (António Costa);
  • “Não há grande probabilidade de chegar um vírus destes a Portugal” (Graça Freitas);
  • o uso de máscara é desaconselhado porque “dá uma falsa sensação e segurança” (Graça Freitas);
  • “Este é, de facto, um produto muito eficaz, um produto que mata todos os micro-organismos e, portanto, bactérias e vírus, e que consegue durante um mês essa mesma segurança. Há uma película que é formada em torno das superfícies onde ele for aplicado” (Matos Fernandes)
  • “No início do próximo ano lectivo teremos um computador por aluno no básico e no secundário” (António Costa)
  • “Os antibióticos são para combater o vírus.” (António Costa)
  • “Uma vez que estive na reunião do Conselho de Estado a aplicação STAYAWAY COVID devia-me (sic) ter alertado. E não alertou.” (Rui Rio)
  • “Diga aos portugueses para votarem noutro Governo” (Marcelo Rebelo de Sousa)
  • As pessoas que vierem à final da Liga dos Campeões virão e regressarão no mesmo dia, com teste feito, em situação de bolha” (Mariana Vieira da Silva)

E já agora, que investiguem também quem foi o aldrabão que disse “Vai tudo ficar bem”!

PS – Se porventura, este meu texto for considerado falso ou enganador, desde já declaro, ao abrigo do n.º 4 do artigo 6.º da referida Lei, que se trata de sátira ou paródia (do nosso país).