Pode um Presidente de Câmara (PdC), ao abrigo do artigo 2º.1. do Decreto-Lei (DL) 406/74 de 29 de Agosto (na redação dada pela Lei Orgânica nº 1/2011 de 30 de Nov.), proibir uma manifestação? Com efeito, o PdC de Lisboa, baseado num parecer da PSP em como uma manifestação convocada pelo grupo 1143 contra a ‘Islamização da Europa’ para o dia 03 de Fevereiro, a partir da Praça Martim Moniz acarretaria elevados e efetivos riscos para a segurança, a ordem e tranquilidade públicas,  ….não havendo condições para assegurar a realização do desfile nos moldes comunicados, proibiu essa manifestação. Não satisfeito com a decisão, os seus promotores recorreram para o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, tendo esta instância, baseada, no essencial, na motivação subscrita pelo PdC, indeferiu a medida cautelar requerida, “ …..desde logo, porque é realizada, precisamente, no local onde existe, com elevada probabilidade, a maior concentração de pessoas praticantes da religião islâmica em Lisboa…”.  Este entendimento permitiu que a manifestação mudasse o local e o percurso para o Largo de Camões até ao Largo do Município de Lisboa.

Em jeito de uma apreciação contextualizada convém ter presente que na atualidade um PdC é constitucionalmente uma entidade distinta da figura do que era o governador civil ou o PdC no ante 25 de Abril já que estes estavam diretamente dependentes do governo. Hoje, a legitimidade interventiva do PdC deriva enquanto órgão do poder local, e não do Governo. Enquanto o governador civil podia determinar diretamente  a intervenção das forças de segurança, já o PdC, na atualidade, tem de solicitar esta intervenção à força de segurança competente. Foi o que o PdC fez ao solicitar um parecer da PSP.

Juridicamente o DL 406/74, tem de se enquadrar e ser interpretado em conformidade com a filosofia e valores democraticamente assumidos pela Constituição da República Portuguesa (CRP). Nos termos do artigo 18º deste diploma, os direitos, liberdades e garantias podem ser restringidos, mas não proibidos. Desta feita, a todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação (art. 45.2. da CRP ). Em princípio, nenhuma manifestação pode ser proibida. Neste domínio, a conclusão 9ª do Parecer do Conselho Consultivo da PGR nº 1/2021 de 10.09.202, dispõe que face ao aviso de realização de uma manifestação, o PdC pode opor objeções ao plano dos promotores em razão da ilicitude ou dos meios que pretendem utilizar. Assim, por ex: uma manifestação visando a violação da vida ou a integridade física ou moral da pessoa não pode ser consentida (arts 24º e 25º da CRP) não sendo necessário fazer apelo ao normativo congénere do Código Penal (artigo  131º) pois se o fizesse jurisdicionaria a questão; tão pouco se tornaria necessário formular qualquer pedido de parecer à uma força de segurança. De igual forma, não podem ser consentidas manifestações de cariz racista ou fascista por tal violar o 46º.4  da CRP. No caso em apreço, acresce que o não consentimento  do PdC poderia fundamentar-se na violação ao art. 13º. 2 (ninguém pode ser prejudicado em razão de origem ou religião), e do artigo 41º (liberdade de religião) ambos da CRP. Tudo isto para dizer que o fundamento para a não realização da manifestação poderia e deveria ser esgotado com exclusiva referência aos preceitos da CRP. Os normativos constitucionais impõem-se por si próprios em sede administrativa.

Na verdade, uma manifestação (ato de efeito imediato e instantâneo) contra o Islamismo realizada em Portugal não só viola o artigo 41º.1 da CRP — A liberdade de religião é inviolável — como é ainda um meio que conduz  e fomenta o ódio racista e xenófobo – artigo 46º.4. Como tal não pode nem deve ser consentida.

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Em sentido contrário a este entendimento, é apresentado o argumento de que o preceito constitucional — art.46º.4. ao “não consentir organizações  racistas” não alude à ‘forma’, mas apenas ao conteúdo da ação em causa. Em comentário e salvo o devido respeito, e ressalvada a ingenuidade argumentativa, olvida-se nesse entendimento que é pela forma que o conteúdo se manifesta ou se revela.

A generalidade de meios de comunicação social, referindo-se ao caso, em vez de sublinhar a flagrante violação da CRP que a manifestação materializava, priorizaram o aspeto de político em como a mesma incidia na proibição de uma manifestação da extrema-direita. Conquanto esta informação corresponda à verdade, urge sublinhar que a proibição não pode assentar neste facto por se tratar de um posicionamento que está vedado ao PdC assumir.

Aqui chegados entende-se que a “proibição” determinada pelo PdC mais se configura a figura constitucional do “não consentimento” (efeito prático do qual coincide com o da proibição), devendo, no entanto, expressar com clareza  e sem subterfúgio que a mesma se fundava na violação da CRP e não se escudar em explicações aleatórias como fez alegando o ‘perigo de ordem pública’. Independentemente desta motivação não ser válida para não consentir uma manifestação, dada a margem de arbitrariedade e latitude que implica para não consentir manifestações em geral, a verdade é que o ‘perigo para a ordem e tranquilidade pública’ é um caso de polícia só visível e combatível ‘ à posteriori’,  para o qual a força de segurança tem de estar preparada com antecedência.