Um dos problemas de a palavra xenofobia se ter tornado consensualmente condenável, é que nos tomamos como naturalmente xenófilos quando, se formos sinceros, não somos. Ninguém nasce a amar estranhos, que é o que está em causa quando censuramos a atitude oposta, a fobia aos “xenoi” (“estranhos” no grego). Qualquer pai sabe que nunca precisou de ensinar um filho a estranhar. Uma das primeiras cenas típicas de estranhamento é quando se dá ao bebé uma comida nova. Quantos vídeos não há hoje de criancinhas a estranhar vigorosamente a primeira colher de sopa, a primeira fruta, o primeiro pedaço de carne? E nenhuma delas foi treinada antes para reagir negativamente. Foi natural estranhar porque estranhar é a coisa mais natural.

Como pregador, passo a vida a pedir coisas não-naturais a quem me ouve os sermões. A culpa é da Bíblia, claro. Por exemplo, neste mesmo Domingo prego acerca da hospitalidade. Claro que é bonito falar em hospitalidade. Mas a hospitalidade é uma coisa estranha, completamente não-natural. Quando a pessoa lê o capítulo 13 da Carta aos Hebreus, no Novo Testamento, lê: “Não vos esqueçais da hospitalidade”. No grego original, a palavra “hospitalidade” é philoxenias, o amor aos estranhos. Ter “philos” pelos “adelphoi”, os irmãos, ainda vá lá. Mas ter “philos” pelos “xenoi” parece não lembrar ao Diabo. Sem dúvida que este texto não nos chama a agir com o instinto mas contra ele. É estranho amar estranhos.

Ninguém pense que há dois mil as pessoas, por suposta maior influência da religião, eram naturalmente mais dadas à piedade de receber estranhos. Não. A hospitalidade há dois mil anos levantava o mesmo risco, ou até maior que levanta hoje, ainda que as culturas do Médio Oriente a valorizassem (e continuem a valorizar) como nós nem tanto. No entanto, a hospitalidade que este texto bíblico alvejava queria ir além dos princípios de reciprocidade, família ou amizade que já existiam na altura. Quando um cristão era chamado a ser hospitaleiro, a estranheza era para abraçar mesmo—afinal, a base da sua hospitalidade não era o que os outros gostariam de nos ver a fazer, mas o que o próprio Deus quereria que fosse feito por causa dele.

E o texto ia mais longe: “não vos esqueçais da hospitalidade, porque por ela alguns, não o sabendo, hospedaram anjos”. Com isto, o autor da Carta não idealizava qualquer tipo de ingenuidade. Não é garantido que abrir a porta a estranhos é abrir a porta a anjos—de facto, muitos de nós já tivemos a experiência de, com a melhor das intenções, termos recebido gente mais parecida com demónios. Mas a sugestão era a de que quem recebe pessoas pode acabar a receber Deus também, mesmo que não calcule. E este pensamento condizia com as próprias palavras de Jesus quando, explicando o valor da humildade, avisava que “qualquer que receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a mim me recebe” (Marcos 9:37). Receber com um coração humilde alguém, pode ser receber Deus.

Tendo em conta que este apelo à hospitalidade vinha em forma de um “não vos esqueçais”, ficava implícito que não ser hospitaleiro era um abandono de um dever cristão. Como assim? Ser hospitaleiro não era um extra que se podia adicionar à vida do crente; não ser hospitaleiro já significava uma maneira de contradizer a fé que assim se devia materializar. Tornando a lição curta e grossa, diria o autor da Carta aos Hebreus: se o que tens, na tua casa, não serve para receberes outros, então não podes esperar que as pessoas acreditem que tu mesmo foste recebido por Deus, tornando-te cristão. Quem é recebido não pode não receber.

Quantos dos que tão rapidamente condenam a xenofobia praticam nas suas casas a xenofilia? Talvez não sirva assim de tanto dar um não à primeira sem dar um sim à segunda. E, tendo dito isto, não vale a pena disneyficar o amor aos estranhos. Poucas coisas comi tão amargas como gente que recebemos em casa e que nos virou as costas. Mas há mais trânsito, entre portas que se abrem e fecham: o Deus que recebe pessoas más, como sinceramente também sou, retribui enviando anjos. É melhor ter um saco-de-cama pronto.

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