O nosso problema não é a solidão mas a ausência dela. Estar sozinho está sob suspeita e tudo tem de redundar em comunidade. Creio que algures num país qualquer houve a sugestão de um Ministério para a Solidão (quis não ter de verificar mas esta besta que a internet é impediu-me e dei por mim a googlar: o Japão já a concretizou). Dirão os mais cuidadosos que a pior solidão pode levar ao suicídio e quem sou eu para negá-lo? No entanto, prefiro elogiar a solidão a partir da morte que acontece em quem só sabe viver acompanhado. Sim, há modos de nunca viver sozinho que são modos de morrer.

Se um dos excessos da nossa época for esta obsessão com a companhia, a solidão valerá ouro. Se concordarmos que acordamos com uma multidão na cama, o maior prazer será a descoberta do sossego. Explico: não é pequena a quantidade de pessoas que, ao despertar, rapidamente se liga através do telemóvel à internet e, ainda antes de se levantar, já encontrou o mundo inteiro na horizontal. Hoje não é preciso ser um lorde britânico do Século XIX servido por um mordomo matinal pressuroso a trazer-nos o jornal para que, antes que a cara seja lavada, os nossos olhos se encham de acontecimentos mundiais. Hoje não somos nós que sabemos de notícias, são as notícias que nos sabem a nós.

Recordo-me, por isso, de uma passagem da “Divina Comédia”. No Inferno de Dante há pecadores que, em decadência eterna, se confundem com a paisagem. No oitavo círculo, o poeta escreve: “Nunca hera assim tão agarrado veio/ às árvores, como essa horrenda fera/ ali foi abraçar um corpo alheio./ E se apegaram como em quente cera/ moldados, misturando a sua cor,/ já de um e de outro sem se ver qual era”. O Inferno é o lugar onde estamos tão junto com os outros que já não se entende quem é quem — o Inferno é a internet feita carne. Acordámos pela manhã, logámo-nos à rede e já não nos sabemos distinguir da teia espiritual onde nos metemos. Antes de dormir consultaremos uma última vez as nossas contas virtuais para garantir que apenas o sono nos poderá separar momentaneamente da providencial ligação.

Dante sugeria que no Inferno nos tornamos nos próprios castigos que nos são infligidos. É um panteísmo sinistro: deixa de haver uma separação entre criatura e criação e o cenário derrete quem lá se encontra. Se eu me dissolver no ambiente em que estou, transformo-me na tortura a que me entrego. É de facto horripilante. “Entre pernas e coxas então dá-se/ tal apegar que em breve essa juntura/ já não tinha sinal que se notasse./ E à cauda fendida vem figura/ que ali já se perdera e sua pele/ já mole se fazia e aquela dura.” Na companhia constante da internet a minha cara vem no fim da cauda. Quanto mais ligadas as pessoas vivem, menos pessoas ficam nessa ligação permanente. Despessoalizamo-nos na comunidade coerciva que a internet é.

Haja, no entanto, espaço para que este último parágrafo termine sem os excessos do manifesto: pela internet ele é lido, afinal. A parte mais emocionante da “Divina Comédia” é o Inferno mas depois vem o Purgatório e, finalmente, o Paraíso. A internet será boa sempre que nos dispensar da sua presença para que, depois dela, venha outra presença qualquer — uma que nos faça ser mais do que aquilo que já somos ligados. A grande descoberta será então a da solidão. E não a solidão como um destino mas a da solidão como a aventura de a ele chegar. O Paraíso encher-se-á de gente que não comprou o bilhete de grupo.

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