Uma família em isolamento, dia 22
“E se te vestisses de professora?”
Primeiro respondi com um “sim, está bem” acompanhado do meu revirar de olhos a que, fiquei a saber, as minhas filhas chamam “aquela cara do pai”. Depois ela insistiu. Uma vez. Duas. Três. Ao longo das duas horas seguintes em que a tentei convencer a concluir uma ficha de estudo e fui acompanhando, ao lado, para que não se distraísse, a minha filha voltou a falar daquilo. Era, para ela, uma ideia brilhante. O pai vestia-se de professora porque isso ajudava-a a imaginar que estava na escola “e é na escola que se aprende”.
Não tem sido fácil. Fazer os trabalhos de casa em tempo de aulas é uma coisa. Fazer trabalhos da aulas em casa, é outra. E não está a correr bem. Ao início a Carolina, com 7 anos, achou piada, mas foi sol de pouca dura. E ao fim de uma semana já estava a dizer que não, porque esta é a nossa sala, não é a sala de aula. Porque esta é a nossa casa, não é a escola. Porque não tenho as minhas amigas. Porque tu és o meu pai e a mãe é a minha mãe, não são a professora.
E foi por aí mesmo que voltei a pegar, mais tarde. E a explicar que podemos desenhar numa cartolina ou duas o abecedário que tem na sala de aula. Que podemos afixar um ou dois trava-línguas. Que podemos pendurar um calendário grande em algum sítio visível. Tudo coisas que ela pediu. Mas não vai ser a mesma coisa. Não pode ser a mesma coisa. Não tem de ser a mesma coisa. Pela mesma razão que eu não me posso vestir de professora – palavra de honra, ela estava mesmo a falar a sério quando o disse. Porque cada sítio é um sítio, cada pessoa é uma pessoa e estes são tempos diferentes, especiais, difíceis, para os quais temos de ter paciência. Mas não podemos ser quem não somos.
E eu não sou um bom professor. Ou não tenho vocação para tal. E acho, honestamente, que todo o dinheiro que os professores recebem ao fim do mês é pouco para fazerem o que fazem.
Se não houvesse alternativa, se esta passasse a ser a nossa realidade, se o home-school fosse um caminho nas nossas vidas por alguma razão, aí sim. Mudaria o que havia a mudar, a arquitetura do espaço às rotinas, das dinâmicas caseiras à organização de tempo. Tudo. Faria tudo o que fosse preciso para garantir às minhas filhas a melhor educação possível, até onde eu conseguisse. E a mais velha iria acabar o segundo ano e a mais nova, com 6, iria estar preparada para o primeiro.
Faria tudo. Menos vestir-me de professora.
Mas o que vivemosagora é um limbo estranho que acaba em resistência às atividades em casa e que não sabemos quando vai acabar. Dia 9 de abril ficaremos a saber o que o governo decidiu: como serão dadas as aulas do terceiro período, a partir do dia 13. Pelo regresso da telescola, com plataformas online como o Teams, que permitem conversações vídeo e enviar e receber material de apoio, ou em modo presencial – esta hipótese está cada vez mais colocada de lado, parece, de modo a manter o isolamento social por causa do coronavírus. E como será feita a avaliação?
Não imagino a angústia de pais e encarregados de educação de adolescentes no ensino secundário e todas as dúvidas que os assaltam neste momento, entre a decisão de as aulas presenciais poderem ser retomadas até 4 de maio (a data limite fixada pelo governo para tal), os exames finais ou o acesso à universidade. E como vão gerindo nas suas casas, nas suas famílias, os desafios destes tempos. Local de estudo, possibilidade de tirar dúvidas, acesso a computador para cada estudante, etc. Comparado com o que se passa nessas famílias – e com a quantidade de famílias onde falta o pão, quanto mais a internet, ou a quantidade de crianças que estão institucionalizadas e não têm a possibilidade de ter um adulto a acompanhar-lhes o estudo – a ideia peregrina da minha filha de que eu me poderia vestir de professora até parece divertida. Ou um problema de somenos importância, face a realidades bem graves.
Mas esta é a realidade aqui em casa. No pré-escolar e no básico, as crianças estão a lidar em casa com as saudades que têm da escola. E, sobretudo, com a machadada que lhes foi dada de um dia para o outro, na rotina de tempo e de espaço, e toda o peso do medo do vírus que veio com elas na mochila onde foram colocados os livros à pressa. Para todos os efeitos, e pelo que sabemos agora, no dia 12 demarço acabou o ano letivo. Sem abraços. Sem beijos. Sem “até para o ano”.
No caso dos alunos em fim de ciclo e que se preparam para mudar de escola, a coisa é ainda mais difícil de levar. Se os outros estão agora a lidar com as saudades dos amigos e professores, porque não se despediram em condições e talvez só se voltem a ver ao vivo e a cores em setembro, estes estão a lidar com a perda. No início do próximo ano letivo – se tudo correr bem – ingressam numa nova escola, com novos professores e, em alguns casos, com novos colegas. Não tiveram oportunidade de fazer uma festa de fim de ano (e de ciclo), não disseram adeus aos amigos, aos professores que os acompanharam, ao espaço físico onde passaram tanto tempo. Veiouma doença, um vírus, o medo do contágio e, de um dia para o outro, deu uma tesourada na vida escolar como eles a conheciam. Acabou!
E os pais bem tentam consolá-los, dizer-lhes que vai ficar tudo bem, que os amigos que são mesmo amigos se vão manter, que assim que isto passar vão voltar a estar juntos e que até lá podem telefonar uns aos outros, ver-se por videochamada, jogar online à distância e até devem ficar na mesma turma, calma, vai passar. Os pais dizem isso tudo. É o que podem fazer. Mas não sabem. Não se sabe ainda. Têm dito isso nas últimas três semanas, vão continuar a dizer mais dois dias
Dirão os mais pragmáticos, realistas, cépticos ou cínicos que isto é tudo um grandecíssimo exagero. E que “perda” é o que se sente quando morre alguém. Que quem tem razão para chorar é quem ficou doente ou tem os pais internados. Que deixar de ter aulas para “ficar fechado em casa com internet, televisão, água quente, comida no prato e a família com saúde é um luxo”. Que “os refugiados é que têm razão para se queixar”. Que “quem tem um míssil a furar-lhe a parede e a matar-lhe o pai é que pode lamentar-se”. Que “lágrimas de gente privilegiada num país em democracia onde os hospitais funcionam e não se morre de fome são mariquices”. Dirão isto e muito mais os que escrevem coisas destas nas redes sociais (de onde retirei estes exemplos), em comentários a notícias e artigos de opinião que têm sido publicados nas últimas semanas. Certo. Há problemas piores. Mas estes são os que temos agora em mãos. E com os nossos filhos.
No dia 9 vamos saber como ficamos. Não saberemos se vai correr melhor ou pior, mas pelo menos teremos uma resposta, uma data, um caminho. Até lá, vou continuando só a vestir a pele de pai que tenta ser professor como consegue.
Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):
Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?
Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?
Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai
Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.
Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal
Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais
Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp
Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha
Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?
Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado
Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas
Dia 12. Agenda: às nove no Instagram ou às dez no Skype?
Dia 13. Como explicar o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?
Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?
Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”
Dia 18. Pão, vinho e Bruno Nogueira. O que mudou em três semanas
Dia 19. O medo lá fora – a minha filha não quer sair de casa
Dia 21. “E então, o que vamos fazer hoje?” Fartos de pensar nisto todos os dias?