António Costa voltou ontem a insistir, estranhamente, numa suposta caça às bruxas. Antes de explicar a minha estranheza queria deixar claro que, pela minha parte, nunca alinharia numa “caça às bruxas” ou na promoção da russofobia. Sempre apreciei a diversidade de opiniões e nunca foi meu estilo recorrer ao ataque pessoal, promover a ideia de uma culpa racial coletiva ou apoiar o cancelamento de ideias diferentes, prefiro debater argumentos e concentrar-me nos factos. Quanto a algumas estranhas divergências nos números do investimento em defesa de Portugal é possível oferecer uns esclarecimentos factuais adicionais.

Uma caça às bruxas não é iniciativa privada

Indo aos factos, o que torna bizarras as declarações de António Costa? O chefe do governo parece não ter uma noção clara do que é uma verdadeira caça às bruxas. Começando pelas que historicamente deram origem ao termo, não se trata de exprimir discordância por crenças menos populares. Uma verdadeira caça às bruxas é a repressão violenta de crenças marginais por instituições com poder para o fazer, por exemplo uma igreja de Estado ou uma autoridade local. Ou ainda um governo ou um parlamento, como foi o caso do senador McCarthy, nos EUA dos anos 1950. É, portanto, bizarro que o chefe do governo, líder do partido com maioria absoluta no parlamento, se manifeste preocupado com algo que ele, melhor do que ninguém, pode garantir que não irá acontecer.

Outra coisa bem diferente é, claro, a crítica livre, seja de opiniões publicadas de alguns dos nossos comentadores mais influentes que decidiram reproduzir acriticamente desinformação do Kremlin, seja das ações de uma câmara municipal que parece ter considerado natural colocar refugiados ucranianos e os seus familiares num país invadido nas mãos de uma associação pró-Putin. Mário Soares nunca se acanhou nas suas críticas ao Partido Comunista e respetivos parceiros, sem que isso significasse que apoiava a respetiva ilegalização ou qualquer caça às bruxas. Espero que António Costa siga esse bom exemplo, e não dê azo a qualquer dúvida sobre querer condicionar o debate livre. A preocupação com não divulgar de forma displicente informações que possam afetar os métodos e os meios dos Serviços de Informações é compreensível, não sendo necessário para a justificar alegar uma pseudocaça às bruxas.

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Portugal afinal não gasta 2% em defesa

Levantei aqui dúvidas sobre a forma como o SIPRI – um respeitado instituto sueco de estudos para a paz – chegava a um nível de investimento em defesa de Portugal de 2,1% do PIB, bem acima dos 1,5% que o nosso país reportava à NATO e que esta valida. Manuel Loff em boa hora chamou a nossa atenção para esse valor do SIPRI e para a divergência com os números oficiais. Fez mal foi em afirmar que a discrepância seria resultado de um poderoso complexo militar-industrial português que seria capaz de falsificar estes números com a cumplicidade ativa da NATO. Pareceu-me mais provável que a divergência nos números resultasse de critérios diferentes, o que acontece muito com estatísticas. Entretanto, confirmei com o SIPRI que é realmente assim.

Contactei o responsável do SIPRI por estes números, que me respondeu rapidamente por mail manifestando todo o interesse em aprofundar a questão. Confirmou que, a par de outras pequenas diferenças, o SIPRI soma à despesa efetuada em defesa por Portugal enviada para a Aliança todo o orçamento da GNR, de quase 900 milhões de euros (face a pouco mais de 2 mil milhões de euros do orçamento da defesa). Isso explica o essencial do salto entre os 1,5% validados pela NATO e os 2,1% do SIPRI. Convém lembrar que, embora, em termos do seu estatuto legal os membros da GNR sejam militares, tem hoje, essencialmente, funções de policiamento civil das zonas mais rurais do nosso país, sob a tutela do Ministério da Administração Interna.

Já a NATO, ao contrário do que alguns também têm afirmado por cá, apenas admite nas contas da defesa dos Estados Membros o orçamento de unidades especiais deste tipo de polícia – nomeadamente a Unidade Intervenção da GNR e seus equivalentes na Guardia Civil, na Gendarmerie, ou nos Carabinieri. Isso faz algum sentido pois estas unidades até podem ser usadas no exterior, complementando as forças militares em gestão de crise. Foram, por exemplo, pedidas pelos EUA, que não têm forças deste tipo, para o Iraque. Foram também usadas na missão da ONU em Timor-Leste. São consideradas ideais para fazer a ponte entre forças militares e policiais em cenários de elevado risco. (O que ainda não ficou claro, nesta troca inicial de impressões, é se isso levou o SIPRI a uma duplicação parcial dos números da GNR, nesse caso trata-se de um lapso a corrigir e não apenas de uma opção a rever.)

Também me foi dito que esta questão não tinha sido colocada ao SIPRI até este ano, mas que estariam disponíveis para rever os seus critérios em anos futuros. Aliás, já o fizeram, segundo me foi dito, de 2020 em diante relativamente à Itália e aos seus Carabinieri, e desde 2021 no caso da França e da respetiva Gendarmerie. Espero que as entidades oficiais tratem de dialogar com o SIPRI para melhorar estas estatísticas que são muito utilizados internacionalmente. É fundamental termos boa informação pública, que torne possível um debate mais informado e sério sobre questões que o contexto atual, de regresso da guerra em grande escala à Europa, torna mais vitais do que nunca.