Já muito próximo dos meus 30 anos de experiência no ramo da restauração, o conceito de carreira começa a perder o sentido e a definição que tinha quando comecei.

Não querendo parecer saudosista, preciso de fazer o exercício de relembrar os meus primeiros estágios. O impacto da entrada nos bastidores de um hotel, com equipas volumosas, bem fardadas, coordenadas, compostas por gente que tinha iniciado a sua vida na copa, vindos do interior do País e que agora ocupavam um espaço num espesso organograma hierárquico. Uns copeiros, outros commis, sauciers, rotisseurs, outros sous-chef e, por último, o Chef.

O Chef era uma figura alva e iluminada, cuja mestria era tanto com a faca, como com a colher. Tinha uma elegância estóica, na sua jaleca vincada e imaculadamente limpa. Antecipava as necessidades de F&B como poucos, isolado no seu pequeno escritório rodeado de livros e dossiês, onde as bebidas brancas e as especiarias mais caras ocupavam a última prateleira. Na sua secretária viam-se mapas de todas as espécies, faturas alinhadas, um telefone com todas as extensões do hotel, o seu barrete pousado e a sua gaveta para guardar as facas e quem sabe o quê mais.

Chegava sempre antes do Chef, para ter a oportunidade de dizer “bom dia Chef”, e, quando havia necessidade de estender o horário ou trabalhar na folga, rapidamente me oferecia. Quando o serviço apertava, cozinhava-se entre suor e sangue. Longas horas em que o cansaço nem se fazia sentir. A pressão chamar-se-ia lôdo, mas esse seria dispensado como “é tudo psicológico, rapaz! Tens muito que andar no lôdo ainda”. Da chegada das matérias-primas à limpeza da cozinha, estávamos lá. Como equipa. Do Chef, não se esperava que limpasse – o seu trabalho era dar-nos trabalho, inspirar-nos, guiar-nos.

Quando estive a estagiar no Japão, o respeito passou a reverência. Palavras como honra eram tão comuns como mise-en-place. Mais que a preparação de alimentos, a sua correta confeção e o seu delicado manuseamento, aprendi que numa cozinha desenvolvemos carácter.

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Pontualidade, assiduidade, compromisso, honra, respeito e dedicação não são só bonitas palavras para decorar uma carta de apresentação, mas são traços que desenvolvi e aprendi de faca na mão e olhos na tábua.

Hoje em dia, as coisas tomaram outro rumo. Numa entrevista, falar de horários parece que estamos a propor a extração de um siso a frio, quando falamos do que se pretende do trabalho, parece que estamos a pedir para assinar um CPCV, na cozinha japonesa tudo é terminologia de neurocirurgia, e admito que as palavras sejam um tanto estranhas no início. As condições que propomos, nem sempre são aliciantes aos jovens com uma vida de trabalho pela frente e é certo que um aprendiz irá sempre começar por ganhar pouco, mas depende de si mudar isso. Infelizmente, sinto que todo o investimento que se fez em formação na área da restauração e hotelaria serviu para exportar excelentes recursos humanos. Já não valem os legados de chefs, nem dos grandes hotéis, nem estrelados restaurantes, para assegurar uma afluência de gente formada e com vontade de trabalhar.

Sou Chef de diversos espaços e vários conceitos diferentes e neste momento as nossas equipas são multiculturais e a formação é dada no local. Sou grato a todos os imigrantes que têm vingado e encontrado o seu caminho profissional na nossa empresa e nesta área. Mesmo com fracos currículos, os seus valores, mãos habéis, palavras honradas e disciplina têm tido a capacidade de corresponder às necessidades de um trabalho árduo, duro e, por vezes, ingrato.

Mas sinto que, por muito que lutemos, nem sempre depende de nós oferecer melhores condições. Esta profissão é dura e um negócio de cêntimos, na sua grande maioria. Os custos de um restaurante são enormes e estrangulam a oportunidade de oferecer melhores condições aos seus trabalhadores. Torna-se exaustivo gerir o dia-a-dia emocional de uma equipa que dá o seu melhor mas nós oferecemos o que conseguimos. Também sei que escrever e falar é muito mais fácil que fazer, mas acreditamos todos que há soluções para estes problemas. Somos um país privilegiado pela sua localização e dependemos grandemente da restauração e da hotelaria como motores do turismo. Queremos continuar a dar o nosso melhor e partilhar a nossa gastronomia com a criatividade que temos vindo a desenvolver na última década.

Não vim vender nem disciplina nem loucura na restauração, apenas gostava que os mais novos que eu acreditassem mais um pouco, aquele bocadinho que faz a diferença, no início das carreiras em que temos de dar o melhor de nós, dar aquele extra que nos faz sentir o peito cheio ao final de um bom dia de trabalho, e nos dá vontade de ir para a copofonia com os colegas. Já dormi no restaurante e muitas vezes em cima de sacas de arroz, já corri seca e meca na hora do aperto e fiz cortes nos dedos em prol de um rápido serviço e até com ressacas de doer a alma trabalhei, mas tudo fez parte , tudo me tornou mais forte dentro da disciplina caótica que impus à minha pessoa na profissão de cozinheiro.

Aos que nos governam, que olhem para os nossos jovens com vontade de fazer mais e melhor e os inspirem, que os guiem, que lhes dêem trabalho e uma carreira digna. Que mostrem que palavras como honestidade, decência, disciplina, compromisso e honra, fazem parte do vocabulário de todos nós.

Marco Aurélio celebrizou muitas frases, mas relembro esta: “O progresso não é alcançado pela sorte ou pelo destino, mas por escolhas, esforço e disciplina diária“. Eu revejo estas palavras diariamente nas minhas equipas, nos meus colegas, na minha profissão, na minha vida. Quero mais e melhor para todos nós, quero jovens dedicados sem preconceitos de nada, mestres do seu futuro, apaixonados pelo que fazem, porque quem ama o que faz, não trabalha um dia na vida.