Um dia destes vamos deixar de falar de incêndios – assunto a que voltaremos uma vez mais no próximo Verão – para tornar a falar do (mau) funcionamento dos hospitais e, a seguir, encher o espaço mediático com a (im)possibilidade de resolver o problema do Aeroporto. Certo é que nos iremos de novo entusiasmar com as virtualidades ilimitadas da regionalização, apesar do risco evidente de se abrir espaço para os pequenos ditadores iluminados, cujo contributo será a fragmentação de um País já de si minúsculo.

O entusiasmo e a dedicação com que nos devotamos a falar dos problemas do País só tem o devido contraponto na absoluta inconsequência das soluções que vão sendo sugeridas para esses mesmos problemas e pela total falência da acção governativa. Os Governos que vamos elegendo, e suportando, não avançam uma ideia sequer do que deveriam fazer e, em boa verdade, nem sequer se preocupam com isso. Para a classe política, o exercício do poder é o único desígnio. E quando os problemas nos caem em cima porque, na verdade, ninguém resolveu coisa nenhuma, a solução é apelar à compreensão dos Portugueses que estão sempre dispostos a aceitar a fatalidade do destino.

Razões para nos queixarmos, não faltam. Todos sabemos que o País não cresce há mais de 20 anos e que, neste período, fomos ultrapassados por quase todos os países de leste que recentemente entraram na União Europeia. E quanto a isto, muito pouco foi feito.

Gostamos de falar dos problemas, mas no fundo, em vez de os resolvermos, aprendemos a conviver com eles. Como sabemos que o SNS não tem médicos nem recursos suficientes, a solução pragmática que encontramos é subscrever planos de seguros e procurar refúgio nos hospitais privados. Assim, pagamos pelo serviço público através dos impostos e tornamos a pagar para ir ao médico nas instituições privadas. Uma evidente duplicação de recursos próprios numa sociedade onde eles são criticamente escassos.

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Constatamos também que o ensino público se degradou e que se transformou num campo de guerra sindical, onde são desvalorizadas as ferramentas de superação cultural e profissional que o sistema de educação deveria oferecer à nossa juventude. Assim sendo, optamos por entregar os nossos filhos ao ensino privado. Pagamos a escola pública com os impostos e depois pagamos a privada com o que nos resta. Uma vez mais, uma evidente duplicação de recursos próprios.

Sabemos que temos um sistema de justiça que se esgota no espectáculo da sua própria incapacidade e onde não faz sentido procurar a protecção da lei. Apesar de pagarmos dos impostos mais elevados do mundo, este é o retorno que temos do serviço público.

Somos um país envelhecido e continuamos a acreditar que é possível que alguns trabalhadores no activo podem suportar o pagamento corrente das pensões da população de reformados em que nos estamos a tornar.

No entanto, apesar da classe política desprezar olimpicamente o que deveria ser a sua obrigação, há em Portugal quem reflicta na realidade e procure elencar o que é necessário fazer para quebrar este ciclo do nosso triste fado. É o caso de algumas, muito raras, entidades privadas onde sobressai, pelos meios de que dispõe e pelas iniciativas que concretiza, a Fundação Francisco Manuel dos Santos. Paulatinamente, a FFMS vai produzindo estudos e promovendo a discussão sobre os temas que nos afligem. Muito do que os nossos políticos eleitos são incapazes de produzir está disponível no seu site e na sua biblioteca. Infelizmente, esses contributos não têm grande resultado prático, mas aí a culpa é dos Portugueses que votam.

Este desabafo resulta da leitura de um interessantíssimo estudo sobre a economia Portuguesa de Luciano Amaral, publicado já em 2010 pela FFMS, e depois revisto em 2020. Leitura vivamente recomendada para quem quer perceber onde estamos e para quem legitimamente deseja que algo seja feito. A análise do estudo cobre as últimas décadas do antigo regime, os solavancos do período revolucionário e por fim o nosso percurso na Europa. O documento, apesar de sucinto, está recheado de factualidade sobre o que somos e o que nos aconteceu. Curiosamente, a análise está longe de fazer parte do doutrinário comum. Quem gosta de falar dos nossos problemas ganharia com a sua leitura.

Faço do documento uma leitura livre:

  • Portugal conheceu, nas últimas décadas do regime que terminou em 1974, o período de maior crescimento económico da sua História. A emigração e a guerra fazem com certeza parte da explicação, mas o país pobre do Séc. XIX e da primeira metade do Séc. XX estava irreconhecível em 1974;
  • A revolução destruiu o sistema económico que existia na ditadura. Impôs um enorme, mas artificial, aumento salarial, numa altura em que uma das maiores crises económicas da História do mundo moderno se desenvolvia com a descoberta do fim da energia barata. Os anos que se seguiram em Portugal foram de recuperação dolorosa e não linear, tendo nós sofrido várias recaídas. A primeira ocorreu logo no início dos anos 80 com a nova crise externa do petróleo, que teve aqui os efeitos negativos alavancados pela política expansionista do início dos anos 80. Passámos, nessa altura, por duas intervenções sucessivas do FMI, que marcaram para nós o arranque dessa década;
  • A política de desvalorização cambial seguida até à adesão ao Euro, a par da inflação, permitiu corrigir a nossa falta de produtividade mas, como bem sabemos, esta fórmula deixou de ser possível em meados dos anos 90;
  • A construção do Estado-providência, a saúde e a segurança social – a que a ditadura nunca deu importância (salvo no final do período marcelista) – ocorre em Portugal, não na fase de desenvolvimento económico dos anos 50 e 60 como aconteceu na Europa, mas num período de profunda crise, o que teve naturalmente impacto nas contas públicas e na dívida;
  • A afectação de recursos à saúde e à educação em Portugal é elevada – cerca de 7% do PIB para cada sector – e, sobretudo, bem superior à média Europeia, pelo que não é verdade a acusação corrente de subfinanciamento destes dois sectores;
  • Apesar da reputação de rigidez, o mercado de trabalho em Portugal é mais flexível do que o de muitos mercados europeus.

Luciano Amaral não alinha com o desporto nacional de que todos os problemas do mundo estão representados em Portugal, onde nós exigimos, e cito, dispor de uma administração pública escandinava, uma indústria automóvel alemã, uma indústria têxtil italiana, um mercado de trabalho holandês e também uma I&D americana. Como ele diz, a verdade é que a Itália não possui a administração pública escandinava, a Alemanha não possui o mercado de trabalho holandês e a Holanda não dispõe da I&D americana. Para o autor, o nosso principal problema é a produtividade, resultante da baixa participação de capital e da relativa ineficiência do seu uso. Consumimos bem, mas não temos poupanças para investir. Não temos capital. Tão simples como isto.

A questão não é de saber se o documento de Luciano Amaral publicado para a FFMS abrange todas as questões sobre a economia portuguesa e contém todas as soluções para os nossos problemas. A questão é perceber por que razão a nossa classe política ignora este e outros contributos e se demite da sua obrigação de preparar o futuro colectivo.

Falta qualquer coisa. Falta capital com certeza, mas não só.

Porque não entregar o Ministério da Economia à FFMS?