Médine é um rapper famoso e polémico. Militante da extrema-esquerda, opõe-se à desigualdade e à violência policial, à reforma das pensões de Macron e defende os Uigures, entre outras causas. O seu historial de polémicas é longo e deveras insidioso. As acusações de anti-semitismo e de promoção da jihad são quase sempre seguidas de actos hipermediatizados de contrição do acusado. Segundo alguns media franceses, grupos da extrema-direita pretenderam assassiná-lo depois do controverso rapper ter, em 2018, reservado o Bataclan, casa de espectáculos onde 90 pessoas foram brutalmente assassinadas por membros do ISIS no dia 15 de Novembro de 2015 em Paris.
Não obstante o seu passado inflamatório, Médine foi convidado para participar na universidade de verão dos Verdes franceses (24 Agosto), partido que integra a coligação NUPES, liderada pelo efusivo Mélenchon. A polémica instala-se quando o rapper, no dia 10 de Agosto, publica no twitter um comentário deveras repugnante dirigido a Rachel Khan, uma Jurista e escritora, filha de um Pai (Gambiano-Senegalês) Muçulmano e de uma Mãe Judia, cujos pais são sobreviventes do Holocausto. Médine, confrontado com a indignação de muitos, pediu desculpas por “se ter esquecido do passado familiar de Khan”.
Todavia, a forma como Médine se dirigiu a Khan no Twitter, salientando e deturpando a palavra sobrevivente, demonstra claramente que o rapper não se tinha esquecido de coisa alguma. Rachel Khan é popular, poucos desconhecem o seu passado familiar. Recentemente, escreveu um brilhante livro intitulado Racée, onde condena ferozmente a importação da cultura Cancel-PC-Woke dos EUA e exalta os valores universais da Revolução Francesa e do Liberalismo. Marie Toussaint, euro-deputada dos Verdes, foi corajosa quando reconheceu que foi um erro convidar Médine para o evento.
Outros vergaram-se ignobilmente perante o potencial retorno do investimento político em Médine, como Jean-Luc Mélenchon e Mathilde Panot da France Insoumise, que invocaram, como seria de esperar, a eterna apologia das “condições sociais” e acusaram a extrema-direita de uma sórdida conspiração para denegrir o bom-nome do porta-estandarte da extrema-esquerda nos banlieues. É certo que a extrema-direita francesa não é flor que se cheire, mas assumir que seria capaz de tal feito é decididamente absurdo, sobretudo se tivermos em conta o longo historial de provocações mediáticas de Médine.
No último artigo que escrevi para o Observador, disse que o RN de Marine Le Pen tinha mais espaço para crescer eleitoralmente do que a coligação NUPES, liderada por Mélenchon. Presumo que esta possibilidade esteja também a ser contemplada pelos estrategas da FI. Ou seja, se a extrema-esquerda (FI-NUPES) for capaz de mobilizar os banlieues tradicionalmente abstencionistas, é possível que consiga compensar pelos potenciais ganhos do RN de Le Pen na classe média baixa. Por outras palavras, a inclusão de Médine na campanha eleitoral da coligação da extrema-esquerda é crucial: só o radicalismo poderá mobilizar os marginalizados.
Naturalmente, a extrema-direita francesa também pretende explorar politicamente o factor Médine, usando-o para reforçar o ethos identitário do RN e, claro, para amedrontar os mais jovens e ingénuos membros da classe média liberal progressista que possam contemplar, por exemplo, a possibilidade de votar nos Verdes franceses. Até Macron poderá beneficiar desta polémica infernal ao denunciar o extremismo do RN e da NUPES. Por outras palavras, a questão Médine expõe, de forma clara e inequívoca, uma simbiose perversa envolvendo todos os actores políticos relevantes em torno da conflictualidade do caso Médine, incluindo o próprio que, suponho, depressa se transformará no ícone político dos banlieues.
O escândalo captou também a atenção do canal televisivo Russia Today, o mais importante meio de desinformação russo. Eles, talvez melhor do que ninguém, saberão instrumentalizar esta polémica na África francófona. Todos parecem ter o maior interesse na intensificação e perpetuação do conflicto, excepto os cidadãos moderados, que são muitos, e aqueles/as que são habitualmente visados nas ruas pelos extremistas de ambos os lados da barricada. Desenganem-se os que julgam que os fervorosos laicos da extrema-esquerda seriam repelidos pelas transgressões politicamente-incorrectas de Médine. O determinismo marxista (condições sociais) exonera os transgressores.
Como devem as sociedades liberais-democratas lidar com fenómenos político-mediáticos como este? Devemos cancelar Médine, impor-lhe um cordão sanitário, bani-lo tacitamente da esfera pública, impedir-lhe de falar e de cantar? Não, decididamente.
Convido, se me permitem, os leitores deste artigo a fazer um exercício de reflexão. Imagine por momentos que é um jovem magrebino que vive nos banlieues e que venera Médine. Quando o rapper conversou com Mathilde Panot na universidade de verão do France Insoumise, insistiu que sempre lutou contra o anti-semitismo e as injustiças sociais e que defende a co-existência pacífica com o “outro.” Foi bastante convincente. O facto político relevante não é o da sinceridade ou insinceridade do rapper de Le Havre. Jamais lhe concederia o benefício da dúvida, mas para o jovem dos banlieues o facto mais espinhoso é que o rapper que fala da “crucificação dos laicos”, que faz gestos anti-semitas e que ataca Khan sem qualquer pudor, é a mesma pessoa que se senta com os laicos da France Insoumise a debater políticas sociais e que afirma contundentemente que sempre lutou contra todas as formas de racismo. A contradição, a contrição e a redenção serão sempre dele, dos laicos esquerdistas que o convidaram para a universidade de verão e de todos os que o apoiaram fervorosamente quando errou.
As grandes contradições morais de Médine são certamente politicamente onerosas e jamais poderiam ser explicitadas e escrutinadas se impuséssemos um véu de silêncio e de invisibilidade sobre as suas palavras e os seus actos. A transparência democrática pode não ser agradável, mas é sempre elucidativa. O jovem magrebino interrogar-se-á, certamente: mas, Médine, tu, durão-mor, que falas em nosso nome, pediste desculpa? Tu erraste? O que fizeste de errado? É assim que os dogmas são postos em causa: pela interrogação.
Fala Médine, diz tudo o que te vai na alma! A dissimulação tem custos, mas só quando é exposta por uma Senhora implacável chamada Liberdade.