Da guerra do ultramar, passando pelo “dia inicial inteiro e limpo” (Sophia) da revolução de abril, com um cravo na ponta do cano, os portugueses de várias gerações ficaram a conhecer o nome de uma arma de guerra: a famosa G3. Hoje, a propósito de mais uma cimeira do G20, que decorreu no passado fim de semana em Hangzhou, China, gostaria de escrever sobre o G3. Não a tal arma nossa conhecida, mas uma potencial arma estratégica para voltar a reequilibrar a balança de poder mundial e enfrentar os novos desafios globais com que nos defrontamos enquanto humanidade.

Para tal, defenderei que a geopolítica não é inimiga da globalização, que a nova Rota da Seda lançada pela China confirma isso mesmo e que, por fim, o revigoramento da Europa como potência normativa é parte essencial de um regresso dos impérios, agora benignos, fazedores de regras para todos.

Após a primeira grande crise económica e financeira do pós-guerra na primeira metade da década de setenta, a que se seguiram as réplicas dos anos noventa, as principais economias do mundo começaram a reunir regularmente com a designação de G7. Mais tarde, com o boom económico inicial da era Putin, juntou-se-lhes a Rússia. E ultimamente, sobretudo como resposta à crise de 2008 e à reconvergência (Niall Ferguson) dos países do chamado segundo mundo (Parag Khana), o círculo foi alargado às principais vinte economias do mundo, passando então a designar-se de G20.

Foi neste forum que se reuniram os chefes de Estado e de Governo pela primeira vez em solo chinês. No debate estiveram em cima da mesa as questões económico-financeiras, como, por exemplo, o consenso sobre a necessidade de contrariar o protecionismo. Mas também a reflexão conjunta ou bilateral sobre outros temas candentes da atualidade geopolítica do globo, como a crise dos refugiados, a escalada do terrorismo internacional, as questões do Médio Oriente (Síria e Iraque), Ásia Central ou Mar do Sul da China, bem como a redefinição das regras para equilibrar a corrida aos recursos naturais, energéticos ou às terras raras (hoje fundamentais para a sustentação da nova revolução tecnológica em curso). Em suma, nesta cimeira foi o planeta, a sua sustentabilidade, segurança e bem-estar que estiveram mais uma vez em questão.

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Acontece que, atendendo aos resultados dos encontros anteriores, não se tem vislumbrado neste G20 o grau de envolvimento, eficácia e operacionalidade necessários à resolução dos problemas do atual estado do globo. Mais, esta falta de resultados concretos tem levado à busca de soluções alternativas e a discutir se, após o fim da Guerra Fria, estamos mergulhados num mundo unipolar dominado pela hiperpotência USA, por um mundo bipolar assente na Chinamerica (G2) ou, como defendo, face a uma solução de polaridades múltiplas, composta a partir de três impérios benignos: União Europeia, USA e China (G3).

Com efeito, independentemente do papel maior ou menor que várias médias potências poderão alcançar individualmente, quer na hegemonia regional quer na obtenção de soluções transitórias benéficas para os seus interesses nacionais, a verdade é que só a escala imperial pode construir soluções alargadas, estáveis e benéficas para o maior número e num horizonte de longo prazo. Foi assim no passado e porventura não poderá ser diferente no futuro. É certo que, hoje em dia, não será politicamente correto falar em impérios, isto é, os impérios não estão na moda. Para muitos, aliás, estes serão mesmo relíquias pré-emancipação e autodeterminação dos povos em todos os azimutes do planeta.

Mas os impérios têm sido durante milhares de anos as entidades políticas mais poderosas criadas pelo homem, impedindo nações de lutarem entre si e assegurando desse modo a eterna aspiração dos povos ao reconhecimento e à ordem. Roma, Veneza, Viena, Lisboa, Madrid e Londres governaram milhares de diferentes comunidades políticas até ao advento do Estado-nação no século XVII. Na altura da Segunda Guerra Mundial, o poder tinha-se consolidado apenas assente em meia dúzia de impérios quase todos europeus. A descolonização que se lhe seguiu pôs fim a estes impérios artificiais — pequenas nações que governavam colónias ultramarinas — mas não implicou o fim do império, enquanto solução de regulação de conflitos à escala macropolítica.

Os impérios podem não ser a forma mais desejável de governação considerando o historial de conflitualidade entre eles, mas a realidade evidencia que a humanidade ainda não concebeu até ao presente algo melhor. São os impérios e não as civilizações que conferem sentido à geopolítica. São as relações interimperiais e não as relações internacionais ou intercivilizacionais que moldam e continuarão a moldar o rumo do mundo.

Ora é aqui que entra a nova reconfiguração imperial: o G3. A União Europeia, os USA e a China são os impérios naturais do mundo: cada um deles unido geograficamente, militar, económica e demograficamente forte, para poder expandir-se (sem a miragem da imortalidade de que falava Toynbee). São estas as três superpotências da atualidade cuja influência diplomática pode conseguir estabelecer princípios, regras, padrões, atitudes para todos os outros. São estes os três espaços de governação macropolítica com capacidade para projetar todo o tipo de poder (soft e hard) a uma escala global.

O G3 será um importante veículo para lidar com os desafios globais. Estabilizar o preço das commodities (nomeadamente as energéticas ou mais escassas), reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, sem abrandar o necessário crescimento económico ou ainda intervir de modo construtivo na reconstrução de Estados falhados ou em desagregação. Goste-se ou não desta solução, o certo é que nenhum desses grandes desafios pode ser ultrapassado com sucesso sem a colaboração estratégica destas três superpotências (como se confirmou agora com a ratificação pelos três do Acordo de Paris sobre o clima).

Neste contexto que se insere também o anúncio por parte da China de uma nova Rota da Seda, nome simbólico para a nova ligação entre este império asiático e o império europeu. Esta Rota passará, por terra, pela Ásia central até Roterdão e, por mar, pelo Índico até ao Mediterrâneo. Este último objetivo acaba justamente de ser alcançado, pois a China adquiriu há menos de um mês a maioria do capital do principal porto do Mediterrâneo (o histórico porto do Pireu na Grécia). Esta será a rota para comprar e vender ao império europeu, equilibrando o recente peso da rota do Pacífico nas relações com o império americano. Apenas ficando a faltar a conclusão do TTIP para assegurar as relações deste mesmo império americano com o império europeu e fechar por essa via o triângulo do G3.

Para muitos este novo G3 poderá fazer lembrar a famosa Trilateral ou qualquer Grupo de Bildeberg. Não será, todavia, necessário apelar a qualquer rebuscada teoria da conspiração para concluir pela sua respetiva plausibilidade. Em vez da híper-democracia à escala planetária, com o inerente fim da história ou em alternativa um choque de civilizações, teremos agora uma nova aliança imperial.

Reconheço, por fim, que seria muito bom que pudéssemos prescindir desta nova aliança imperial com a eleição de António Guterres para secretário-geral da Nações Unidas. Isto é, que esta organização, com um português na liderança, pudesse assumir o papel de regulador mundial para que foi instituída após o segundo conflito planetário (em que sucedeu à fracassada da Sociedade das Nações criada na sequência do primeiro conflito mundial para tentar por em prática o universalismo wilsoniano). Infelizmente, porém, a natureza humana e a forma de conquista, exercício e manutenção do poder ainda não mudaram assim tanto como muitos de nós gostaríamos…

José Conde Rodrigues é professor universitário