Voltando à habitação. Há uma teia complexa de motivos e circunstâncias a provocar o problema, já se falou de alguns deles, de maneira um pouco solta. Convém distinguir a parte que depende dos poderes públicos, já que sobre essa parte eles podem intervir com uma certa esperança de eficácia. As regras da construção costumam ficar esquecidas, como se o papel delas fosse irrelevante. Vamos ver de que modo contribuem para distorcer o mercado e tornar os preços incomportáveis para a classe média, que é onde está o problema. Não se ouvem queixas de falta de casas no mercado de topo, ou no invejado segmento “de luxo”. Onde há falta de casas é no mercado para a classe média, curiosamente, o maior mercado em termos de população. Porquê?

Já vimos que, em parte, por causa dos impostos. No preço final de uma casa, 60% são custos efectivos e 40% são impostos. Quer dizer que numa casa de 500 mil euros, 200 mil são entregues ao Estado. O mercado “de luxo” tem margens para absorver estes custos. Mas quer dizer também que numa casa de 250 mil euros, um valor razoável para uma família de classe média, 100 mil euros são para o Estado. É preciso construir essa casa por 150 mil euros, o que em Lisboa (e mesmo no Porto) é praticamente impossível.

Já vimos que, em parte, por causa dos licenciamentos, demorados e imprevisíveis. Em média, dois anos é o que a Câmara Municipal de Lisboa reconheceu como tempo de tramitação de um pedido de licenciamento; oito anos é o que dizem as associações de investidores. Imprevisíveis porque os regulamentos, entre outras aberrações, contêm articulado incompatível; e também pela instrução dos processos, espécie de exercício iniciático dominado por Belzebu que, para gozo do seu espírito ladino, muda as regras enquanto esfrega um olho. Tudo isto afasta o investimento, já que as actividades económicas são avessas às arbitrariedades. Salvam-se (por assim dizer) as grandes empresas imobiliárias, com departamentos jurídicos próprios a trabalhar para elas a tempo inteiro. O pequeno investidor, que atravessa o processo à procura do último cêntimo esquecido no forro das calças, acaba esmagado e sentado na borda do passeio. Enquanto se lembrar desta, não volta a meter-se noutra.

Já vimos que, em parte, por causa dos custos de construção, praticamente iguais ao resto da Europa. Constrói-se em Lisboa a preços muito semelhantes aos de Berlim, Madrid, Paris, Oslo ou Estocolmo. Tirando as romagens de chapéu estendido ao BCE, ninguém parece lembrar-se que vivemos num mercado aberto. A mão de obra será talvez um pouco mais barata, mas os materiais, equipamentos, e tecnologia, custam regra geral os mesmos preços ou até são um pouco mais caros. Os impostos, seguramente, são mais altos, e também se aplicam aos materiais e recursos técnicos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E chegamos às regras propriamente ditas, aplicáveis à construção ou reabilitação profunda de edifícios, como habitualmente se faz em Lisboa ou no Porto. São tão exigentes como no resto da Europa e, em certos casos, mais apertadas. Ou seja, temos uma das piores economias e as regras mais apertadas para a construção. Uma extravagância. Por exemplo, vendemos turismo prometendo um clima magnífico, e “o nosso sol”, e “as nossas praias”; as regras portuguesas de eficiência energética são mais exigentes que na Dinamarca. Ou seja, obrigamos a construir melhor em Lisboa do que em Copenhaga. Isto encarece brutalmente as obras e afecta o preço final das casas. Seria possível simplificar regras de eficiência energética, mas também muitas outras, como acessibilidades, ruído, infra-estruturas de gás, de electricidade, ou redes de telecomunicações. E manter as exigências de segurança, estabilidade, e resistência sísmica. Também não digo que se deve acabar com toda a regulamentação; mas muitas das regras podiam e deviam ser facultativas. Até por uma questão de liberdades individuais: se uma pessoa não quiser ter gás, e escolher equipar-se exclusivamente com aparelhos eléctricos, por que devemos obrigá-la a pagar o projecto, submeter a aprovação, e mandar instalar uma infraestrutura de gás na casa dela?

Aliviar estas limitações seria a maneira de conseguirmos um mercado com casas para vários orçamentos, com várias características, e a preços diferentes. Como sucede no mercado de automóveis, em que existe um segmento “de luxo”, e um médio-alto, outro de carros familiares, outro ainda de carros “citadinos”, etc. E as pessoas escolhem de acordo com o preço que podem pagar. Seria um mercado de habitação mais saudável, com uma oferta adequada à procura, sem distorções.

Na primeira década deste século, construíram-se em Portugal 700 mil casas. Na década seguinte, entre 2010 e 2020, construíram-se 140 mil, (menos 80%). E não foi por falta de procura, que subiu sempre. Como é que se podia esperar que os preços não disparassem? Pior: as exigências tornaram-se tão apertadas que nem os privados, nem o próprio Estado consegue construir. As regras portuguesas só deixam construir as casas que o mercado interno não consegue comprar. Falta deixar construir as outras.