É um dos pormenores que faz a diferença em “Rabo de Peixe”: a pequena participação de Zeca Medeiros, o actor, músico, realizador, referência maior do audiovisual açoriano. Interpreta o velho presidiário que ensina ao italiano como fugir da cadeia, ele que não sai de lá porque “só se fosse maluco” é que queria ir lá para fora.

É nele que penso imediatamente quando oiço ou leio as críticas depreciativas à série, esta semana confirmada entre o top 10 mundial da Netflix das mais vistas em língua não inglesa. No cuidado de Augusto Fraga em convidá-lo para o projecto, na generosidade e interesse de Zeca em participar. E no filho dele, David Medeiros, que dá corpo e fúria a Lavrador, um dos capangas do vilão Arruda, e que também realizou o videoclip de “Eu Não Vou Chorar”, versão do original de Sandro G, por sua vez interpretado pelo Romeu Bairos, que veste a pele do rapper na cena do concerto/overdose de Sílvia. Penso no cuidado de ter todas estas pessoas, e tecer toda esta teia de açorianidade, costurada debaixo da face mais visível e imediata de “Rabo de Peixe”, e confronto-a com as críticas segundo as quais faltam actores açorianos. Que é em Rabo de Peixe, mas podia ser noutro sítio qualquer. Que a série é “demasiado americana”, segue “fórmula Netflix”. E, claro, a falta de “sotaque açoriano”, sabe-se lá a qual deles se refiram.

Tem graça. Suspeito que fossem as mesmas pessoas que precisaram de legendas para ver os “Xailes Negros” e o “Mau Tempo no Canal” e outros projectos realizados por Zeca – com sotaque.

Também têm piada os que se indignam com os “palavrões”. O mesmo país que costuma apontar a falta deles nos diálogos das séries e das novelas nacionais.

Portugal nunca estará completo sem uma estátua ao atirador de postas de pescada, o especialista de bancada. De Vilar Formoso para cá, há gente que sabe de tudo, com a enorme vantagem de nunca ter tido de o fazer para o provar. São os 90 generais a comentar a guerra da Ucrânia na televisão, os 1001 analistas desportivos e, claro, os críticos de cinema e tv. Em cada português, há um general, um treinador e um crítico – por isso é que, às vezes, não resta espaço lá dentro para mais nada, nem sequer para um funcionário público esforçado.

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O mais curioso é que esta inclinação nacional para o bitaitismo não escolhe classes sociais. Não discrimina. Ataca todos os níveis de instrução, dos comentadores de café aos pares artistas. Como se padecessem de uma malformação congénita ao nível do amor próprio, que os obrigasse a dizer mal de tudo o que tenha o atrevimento de funcionar.

Este não é o sítio para discutir as qualidades ou defeitos de “Rabo de Peixe” – não é uma crítica de televisão –; é apenas o lugar de onde olhamos a reacção a “Rabo de Peixe”. Conseguir ser uma das séries mais vistas do mundo, mesmo que momentaneamente, no ciclo cada vez mais rápido e voraz do universo mediático, é um feito quase ridículo de tão extraordinário. Há anos que a televisão portuguesa tenta a internacionalização, através de coproduções, temas pretensamente de interesse transfronteiriço, actores convidados, etc – sem qualquer resultado substantivo. Agora que o consegue, é notável que o primeiro impulso de tanta gente não seja aplaudir, mas vaiar, a incompreensão em vez da admiração, procurar o defeitozinho em vez da virtude, (não) tentar perceber porque é que esta funcionou e a deles não – nem que fosse porque, obviamente, o resto do audiovisual português só tem a ganhar com o sucesso de um projecto português.

Como beneficiamos dos triunfos de João Canijo, João Salaviza, Leonor Teles ou Pedro Costa no cinema. E antes, dos de Oliveira ou César Monteiro. Como toda a ficção audiovisual de “língua não inglesa” anda a colher frutos desde que a “Casa de Papel” pôs os americanos a ver coisas com legendas. Mesmo que não se goste da “Casa de Papel”. Mesmo que não se goste de “Rabo de Peixe”.

De resto, é óbvio que todos temos o direito a gostar ou não gostar do que quisermos e bem entendermos. Mas, quando abrirmos a boca para criticar, que o façamos pelas razões certas. “Rabo de Peixe” é comercial? Claro que é. A diferença é que é um comercial muito bem feito. É um golo, uma taça num país de rodriguinhos que se perderam a meio-campo. “Rabo de Peixe” é o Éder.

E, portanto, volto ao Zeca Medeiros, à sua pequena aparição unindo a melhor ficção televisiva já feita a partir dos Açores. Ao David Medeiros, ao Romeu Bairos e ao Sandro G. E à Ana Lopes, ao Miguel Damião, ao João Cabral, ao Luís Filipe Borges, ao Mário Roberto, ao Frederico Amaral, ao Pedro Medeiros, ao Nélson Cabral, e tantos outros açorianos que colaboram com a série, mesmo que, provavelmente, os atiradores de postas de pescada (nos Açores, é mais abrótea) não façam a menor ideia.

As personagens de “Rabo de Peixe” querem fugir para a América. Os críticos gostam de dizer que a série é “demasiado americana” (supõe-se que isto queira dizer: bem filmada, bem iluminada, bem interpretada, com ritmo e graça). Mas os americanos, diz-se, gostam de construir heróis para, depois, os deitarem abaixo; e nós, portugueses, gostamos mesmo é de deitar abaixo. No fim, quando estiverem bem enterrados, então faremos deles uns heróis.