Um dos elementos do nosso subdesenvolvimento pode resumir-se no uso do “eles”. “Foram “eles”, é por causa “deles”, “eles” é que têm a culpa. Ninguém se considera também responsável pelos seus próprios actos e ainda menos pelo destino do país ou por comportamentos que contribuem para o analfabetismo, a iliteracia ou ainda para aspectos tão simples como manter a sua rua limpa.

É uma pesada e profunda herança do Estado Novo. Que, para nos ter em ditadura, nos manteve analfabetos, desresponsabilizou-nos enquanto indivíduos e fez de nós iletrados cultural, social, económica e financeiramente. Com o apoio e cumplicidade das elites, elas própria também viciadas neste perfil de “povo”. Algumas dos raciocínios a que assistimos hoje e que são atribuídos à esquerda recordam dolorosamente essa política de infantilização, uma das receitas para dominar os povos.

Num retrato dos Açores em números sistematizado pela Pordata no âmbito das comemorações do 10 de Junho há dois indicadores especialmente chocantes. O primeiro é a taxa de abandono escolar (23%) mais do dobro do já de si negativo valor que se observa no país como um todo. Podemos obviamente ter a perspectiva do “copo meio cheio” e dizer que está a descer significativamente (em finais da década de 90 do século XX era superior a 50%). O outro indicador, indirectamente ligado ao anterior, é o que se refere aos beneficiários do Rendimento Social de Inserção – 11,6% da população para 3,2% no conjunto do país.

Como é isto possível? Esta realidade corresponde basicamente à imagem amplificada do que é o país como um todo. E só é possível ter indicadores tão negativos em questões tão fundamentais porque a sociedade no seu conjunto não é exigente, porque não existe pressão da comunidade, a começar pelas próprias elites, para a educação e a independência de que se faz a liberdade. A responsabilidade não é de cada um de nós, é “deles”.

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Esta desresponsabilização que chega aos limites da infantilização e da inconsciência reflecte-se igualmente na vida financeira.

“Se os bancos emprestam é porque eles (outra vez eles) acham que podemos pagar”. Quantas vezes alguns de nós ouviram esta frase no passado, quando se alertava para a prudência que era preciso ter nos créditos que se aceitava dos bancos. Poucos se lembravam que a prosperidade nunca é eterna – e não é apenas um problema do capitalismo -, que a crise faz parte do ciclo que tem na outra parte a expansão. Ninguém sequer sabia que os bancos podem emprestar pequenos montantes sem que corram riscos, como sintetiza a frase: “Se deves mil o problema é teu, se deve um milhão o problema é do banco”.

Pois este problema regressou. Os bancos voltaram a algumas práticas do passado, oferecendo pequenos créditos – na perspectiva do banco – e grandes dívidas – na perspectiva de uma família que de repente pode ver o seu rendimento diminuir. Por exemplo, a pretexto do Mundial de futebol, “oferecem” financiamento para se comprar uma televisão.

A reacção mais provável a esta notícia é: “Eles” (outra vez eles) deviam impedir os bancos de fazer isso. E se nos manifestarmos contra este argumento corremos o sério risco de ser acusados de estarmos a defender os bancos. Porque o povo, dirão, coitado, precisa de ser protegido. E sem se darem conta, aqueles que se consideram na vanguarda da sociedade, estão a defender a sociedade idealizada por Salazar: um povo que precisa de um “paizinho”.

Uma sociedade desenvolvida não precisa de “paizinhos”. O que temos de reivindicar é o direito a não sermos infantilizados e o dever de tomar conta, responsavelmente, da nossa educação e das nossas finanças. E isso só acontece se quem o não fizer sofrer as consequências da sua irresponsabilidade em vez de ter o “paizinho” a mantê-lo dependente.

As elites políticas e empresariais têm neste domínio uma enorme responsabilidade. São elas que são cúmplices dessa irresponsabilidade e infantilização. O que ganham com isso? Aquilo que entranhadamente nos deixou a cultura do Estado Novo: um exercício fácil de poder. Mantendo um exército de dependentes uma democracia é tão fácil de gerir como uma ditadura.

Quando este Governo e os partidos que o apoiam, nas criticas que faz ao que se passou na era da troika, concentra os seus argumentos nas políticas que foram seguidas, em vez de revisitar os erros que foram cometidos no passado que nos levou à crise, está a infantilizar-nos e a desresponsabilizar-nos a todos.

Cometeu-se o erro grave de fazer acreditar que os nossos problemas financeiros estavam ultrapassados, quando se sabia (e sabe) que isso não era (nem é) verdade. A política não pode ser a arte do ilusionismo que nos transforma a todos em crianças. Tem de ser a arte de nos persuadir, com factos, com a realidade, para responsavelmente aceitarmos decisões que têm de ser tomadas, por mais difíceis que sejam. Mas não tem sido assim nos últimos tempos. E toda esta renovada infantilização e desresponsabilização determina renovados comportamentos irresponsáveis nas famílias que não põem os seus filhos na escola, que se endividam para comprar uma televisão, que exigem que o Estado tome contas delas quando não precisam, à custa de quem precisa e da sua escravização aos poderes.

A infantilização serve o poder, é o novo ópio do povo, um novo modelo de estar em ditadura na democracia. As elites, algumas pelo menos, deviam perceber isto. Se o seu objectivo é desenvolver o país e não apenas viver das rendas geradas por esta infantilização dos cidadãos.