Nas aulas em que explico aos meus alunos o que é o dinheiro em termos físicos (há outros?) dedico uma meia-hora àquilo a que chamo o “teorema do dinheiro”, que diz o seguinte: tomemos uma economia que cresceu desde o seu princípio por ter uma carrada de homo sapiens a exercer trabalho físico, acrescentando-lhe trabalho económico. Essa economia tem, no instante de análise, uma dada quantidade de trabalho que se foi acumulando ao longo do tempo. É neste mesmo instante que resolvo medir essa quantidade e bato de frente com um problema. Vou medir com o quê? Então imprimo uma quantidade de notas com um número na face e umas imagens de pessoas importantes ou monumentos, para a coisa ficar com um ar oficial. Em vez de as pessoas trocarem trabalho (presente, passado ou futuro), passam a trocar essas notas (no presente, no passado ou no futuro). Agora que a medida ficou numericamente mais fácil, é só saber quantas notas eu imprimi.

Vamos imaginar, nesta fase, que parte da economia não é representada pelo dinheiro que imprimi. Essa parte da economia não pode, então, fazer trocas com a outra parte, já que não é representada por dinheiro e, logo, não faz parte da economia. Ou seja, não pode haver partes da economia que não sejam representadas pelo dinheiro que imprimi. E o reverso, pode haver mais dinheiro do que aquele que representa a economia? Bem, isso implicava que tivesse notas que representassem a economia, e serviam para trocas, e outras notas que não serviam para troca, isto é, não valiam nada. Logo, não pode haver mais dinheiro do que aquele que representa a economia. Ora, se não pode haver mais economia do que dinheiro, nem mais dinheiro do que economia, então as notas que imprimi até agora representam EXATAMENTE a economia que construí até agora. Mas quantas? Não interessa, sejam quantas forem, a sua totalidade corresponde ao valor exato de toda a economia. É este o enunciado do dito teorema.

Estranho, então pode ser qualquer valor? Na verdade, sim. Porque o que é física, o que é material, é a economia. O dinheiro, servindo para medir, não vale fisicamente nada. É apenas um referencial, um ponto de observação abstrato e artificial sobre a economia. Portanto, posso ter 4 notas ou 4 000 000 000 que é igual, porque o que é real é o litro de gasóleo ou uma hora do meu trabalho. Lembrem-se, no entanto, que a partir do momento que meti um número na nota, por exemplo 10 euros, esse número não vai mudar. Como a economia está sempre a crescer e não consigo ir a correr mudar o número na face da nota para que esta represente a economia que, entretanto, tenho a mais, preciso de fazer uma coisa: imprimir mais dinheiro. Na verdade, o dinheiro não desvaloriza como é comum pensar. O que acontece é que a economia, aquilo que é físico e real, valoriza face ao dinheiro.

Como é que, então, conseguimos que o dinheiro impresso cresça, mais ou menos, como a economia? Com recurso ao sistema financeiro. Quando vamos ao banco pedir dinheiro emprestado para fazer alguma coisa, o banco vai pedir o dinheiro mais barato que arranja. Primeiro aos depositantes como o meu caro leitor, depois aos outros bancos e, finalmente, ao banco central que o vai imprimir. Assim, só se imprime quando é necessário, isto é, quando não o há. Basta que o preço de imprimir seja mais elevado que o preço de procurar.

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O facto de o dinheiro ser apenas um referencial da economia, e não economia em si, acarta um pequeníssimo problema. É que se para fazer crescer a economia é preciso estudo, esforço e trabalho; para imprimir dinheiro não é preciso nada disso, como se deduz facilmente da forma como se montam bancos centrais.

Desde 2012 que o Banco Central Europeu dá aos bancos dinheiro de graça. Isto é, que o custo de imprimir mais dinheiro é zero. Por outras palavras, desde há 10 anos que se imprime dinheiro sem ser necessário o crescimento físico da economia. Então, de acordo com o que leram acima, podemos dizer que o valor do dinheiro face à economia tem sido cada vez menor ou, por outras palavras, que os preços têm andado a subir à maluca ou, ainda no linguajar errado dos economistas, que a inflação tem subido por aí acima desde há uma década. Mas, surpresa das surpresas, não. Aliás o fenómeno da subida é relativamente recente, tem cerca de um semestre! Se imprimimos dinheiro de borla durante tantos anos, a inflação (vamos usar a expressão errada dos economistas) devia ter crescido à grande durante os últimos 10 anos, certo? Então porque não cresceu?

O meu ponto é que ficamos enormemente preocupados com aquilo que os bancos centrais dizem, mas muito pouco com aquilo que não dizem. E o facto de não dizerem durante 10 anos porque é que a inflação não cresceu é muito mais preocupante do que agora dizerem que cresceu (até porque desta não temos dúvidas). Não dizerem nada nos 10 anos anteriores significa que não sabem o que fazem e isso, meus caros amigos, isso é que me preocupa a sério.

Se eu tinha taxas de referência zero ou negativas e os preços não subiam, das duas uma. Ou a economia encolhia e na verdade o dinheiro não era consumido, ou o dinheiro representava uma economia mais ampla do que aquela que estávamos a medir. E eu, se fosse governador de um banco central, apostaria nesta e começava a juntar a economia europeia e a chinesa na mesma medida; provavelmente para chegar à conclusão de que a medida dos preços está a subir há 10 anos porque, desde há mais tempo que isso, os chineses trabalham e os europeus consomem. Apostaria, ainda, que a quebra dos fluxos económicos entre as duas economias (ou três, se juntarmos os EUA) – devido à pandemia e a equalização dos custos do trabalho -, fez com que o ritmo de impressão do dinheiro passe a ser finalmente reproduzido nos preços dos bens.

Ora, se me incomoda o facto de os bancos centrais não saberem durante 10 anos a razão pela qual os preços não subiam, nem terem feito nada por isso, é-me mais incómodo nesta altura em que dizem que vão fazer alguma coisa porque os preços estão a subir. E é-me incómodo que só saibam dizer que a inflação é um mal em si mesmo quando parecem não ter a mais pequena ideia do que isso significa.

Não sou, nem nunca fui, um adepto de taxas de referência zero ou negativas. Se pedir ao banco central para imprimir dinheiro sai mais barato que procurar o dinheiro que existe dos depositantes, é isso que os bancos vão fazer. E se achei uma estupidez que em 2012 se passassem as taxas do Euro para zero para salvar uns quantos estados governados por gente pouco recomendável, acho hoje uma estupidez que se subam sem saber porquê, nem para quê. Sei que as instituições não me parecem as indicadas para o fazer, tendo em atenção o que aconteceu nos últimos 10 anos.  É relativamente óbvio que as taxas não podem ser zero ou negativas, por isso a discussão em que os governadores dos bancos centrais se envolveram nos últimos tempos para arranjarem uma alternativa parece “Erdoganomics”, em homenagem ao presidente turco que é a única pessoa do mundo que acha que para combater a inflação é preciso baixar a taxa de juro. Mas vão subir para quê e que medida vão usar para saber se já chega?  Pois, eu ficava mais descansado se a decisão passasse para alguém que percebesse mesmo de finanças.