Celebra-se hoje, 18 de Maio, o centenário do nascimento de Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II. Não é possível dar aqui conta da imensidão de artigos, teleconferências e muitos outros eventos que em todo o mundo assinalam a efeméride. Mas podemos recordar a influente biografia autorizada de João Paulo II, produzida pelo norte-americano George Weigel e publicada entre nós pela Bertrand, há vinte anos, sob o título Testemunho de Esperança.

George Weigel é ainda hoje um dos mais prestigiados ‘intelectuais públicos’ católicos nos EUA (e também um grande amigo de Portugal, que visitou várias vezes a convite do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica). Weigel apresentou-se desde sempre como admirador do Concílio Vaticano II e discípulo de uma tradição católica liberal que se revê em autores como Lord Acton e Alexis de Tocqueville. Para surpresa de alguns, Weigel declarou-se também admirador de João Paulo II e do seu pontificado.

João Paulo II decidiu autorizar Weigel a aceder a todos os documentos e testemunhos que julgasse necessários para preparar a biografia — que foi definida como ‘autorizada’, mas não como ‘oficial’. O Papa conversou assiduamente com Weigel ao longo da preparação da obra — mas preferiu não ler a biografia antes da sua publicação. Trata-se, por isso, de um trabalho independente, embora de um profundo admirador do biografado.

George Weigel argumenta que João Paulo II completou aquilo que Sir Michael Howard, que foi um influente professor de História Moderna em Oxford, chamou de ‘grande revolução do século XX’: o reencontro da Igreja Católica com a causa da democracia e dos direitos humanos.

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Em termos políticos, esse reencontro não contribuiu ‘apenas’ para a queda do Muro de Berlim e das ditaduras comunistas na Europa central e de leste. Contribuiu também decisivamente para o sucesso da ‘Terceira Vaga’ de democratização mundial — aquela cujo início Samuel P. Huntington, o célebre professor de Harvard, atribuiu ao 25 de Abril de 1974 em Portugal e que ocorreu dominantemente em países católicos. (Huntington chegou mesmo a argumentar que a queda do Muro de Berlim  tinha sido a segunda fase da “Terceira Vaga” de democratização iniciada por Portugal).

George Weigel argumenta que João Paulo II desenvolveu a doutrina social da Igreja num sentido profundamente anti-autoritário e contrário a todo o poder político ilimitado, qualquer que fosse o seu quadrante ideológico. São particularmente marcantes as passagens de Weigel dedicadas ao pensamento de João Paulo II sobre a importância crucial do pluralismo e da subsidiariedade, da separação entre o Estado e a Igreja, e da condenação de qualquer tipo de sacralização do poder político.

Weigel recorda uma outra área crucial de convergência do pensamento de João Paulo II com argumentos desenvolvidos por autores liberais do século XX, como Karl Popper, Isaiah Berlin ou Raymond Aron: a ideia de que a crença dogmática na chamada ‘Razão’ — e a recusa do diálogo entre Razão e Fé — produziu aquilo que Aron designou por ‘ópio dos intelectuais’, que Popper chamou de ‘racionalismo dogmático’ e Berlin designou por ‘monismo racionalista’.

Uma da expressões políticas desse racionalismo dogmático manifestou-se, sobretudo desde o século XVIII, nas tentativas estatais de expulsar a religião da praça pública. Weigel recorda que essas tentativas remontam pelo menos ao projecto jacobino de sufocar o pluralismo descentralizado da sociedade civil em nome da chamada ‘libertação’ ou da também designada ‘verdadeira liberdade’ — basicamente a ‘liberdade’ de obedecer às doutrinas estatistas e anti-religiosas do jacobinismo.

Citando Edmund Burke, Lord Acton e Alexis de Tocqueville, Weigel recorda que essa versão de ‘liberalismo anti-religioso’ nunca teve expressão significativa na cultura política de língua inglesa. Mas alertou, citando João Paulo II, que uma nova versão do monismo racionalista estava a emergir no Ocidente, incluindo nos povos de língua inglesa: o esgotamento espiritual das sociedades modernas.

O Iluminismo prometera ‘libertar’ o homem através do conhecimento. Era uma promessa com elevação. Mas o que hoje parece restar dessa promessa exprime um drástico ‘abaixamento do olhar’ (uma expressão cara a Leo Strauss). Trata-se basicamente de um culto narcisista do ‘eu’ e da satisfação imediata, com uma total legitimação do capricho da vontade sem entrave e uma recusa de normas de conduta moral partilhadas.

Karl Popper, curiosamente, tinha identificado esta emergência do relativismo niilista como resultado do que designara por ‘racionalismo dogmático desapontado’: da confiança cega na ‘certeza’ da razão, o racionalismo dogmático passaria à certeza cega na impotência na razão — uma espécie de simbiose entre Marx e Nietzsche. George Weigel recorda enfaticamente a crítica de João Paulo II aos excessos do racionalismo e os seus alertas para que esses excessos estavam a conduzir ao relativismo niilista. O homem moderno só reencontrará os recursos morais para domesticar a pressão para baixo se restaurar o diálogo entre Fé e Razão.

João Paulo II foi o testemunho vivo dessa esperança na possibilidade de restaurar a dignidade da pessoa humana através de um diálogo aberto entre Fé e Razão, na busca sempre inacabada da Verdade, do Bem e do Belo.

In Memoriam: José Cutileiro. Fui atingido duramente pela notícia da morte de José Cutileiro, de quem tive o privilégio de ser amigo. Foi um grande patriota e um grande democrata, opositor ao salazarismo e opositor ao PREC comunista. São inesquecíveis os seus “Bilhetes de Colares” no jornal Semanário, fundado e dirigido pelo nosso comum amigo Vitor Cunha Rego. Bem como os seus Obituários In Memoriam no semanário Expresso. São para mim particularmente inesquecíveis os almoços e jantares no English Bar, do Monte Estoril, onde celebrávamos regularmente a nossa comum admiração pela tradição da liberdade ordeira sob a lei, não revolucionária, dos povos de língua inglesa. Agradeço ao Observador a honrosa homenagem que tem prestado a José Cutileiro.