1 Os últimos dias têm sido férteis em exemplos de como o jornalismo anda pelas ruas da amargura. O caso da polémica em torno dos escritos passados do juiz conselheiro eleito entre os seus pares para Presidente do Tribunal Constitucional é disso exemplo.
João Pedro Caupers foi nomeado juiz do Tribunal Constitucional em 2014. Desde 2016 é vice-presidente daquele tribunal. E só agora, quando assumiu o lugar de presidente, é que a imprensa descobriu os polémicos escritos do Professor de Direito. Ou será que só agora deu jeito a uma determinada agenda fazer disto um escândalo? Afinal, o juiz era visto como próximo do Partido Socialista (apesar de ter sido cooptado pelos seus pares) e esteve no tribunal de mais alta instância estes anos todos a tomar decisões e a assinar acórdãos. Provavelmente, muitos deles da conveniência de quem agora rasga as vestes com o seu passado nas redes sociais.
Vamos por partes. Tudo começou quando uma jornalista com a agenda dos costumes decidiu transcrever alguns destes textos para a imprensa. O artigo insere-se no jornalismo de causas, contra o qual nada há a obstar, a não ser o facto de ele não ser declarado com transparência. É que isso tornaria mais claro que um jornalista de causas não pode ser o juiz imparcial da imparcialidade de um juiz do Tribunal Constitucional.
Mas o mais grave é que toda a imprensa e a maioria da opinião publicada, sem qualquer sentido crítico ou objectivo, numa reacção pavloviana que normalmente estas denúncias provocam, deu ressonância ao facto. Sem se questionar. Sem fazer um escrutínio sobre os acórdãos e as decisões tomadas por João Caupers ao longo da sua já vasta carreira como juiz do Tribunal Constitucional. Apenas servindo de caixa de ressonância da denúncia do jornalismo de causas, que só agora descobriu que o referido juiz tem opiniões pessoais, mais ou menos polémicas. São as suas.
Este caso prova não só que os jornalistas, na sua maioria, estão a deixar de cumprir a sua missão, como, pior, estão ao serviço de uma nova polícia da opinião, condenando aqueles que ousam desafiar o pensamento dominante.
O caso torna-se tanto mais grave quando, por causa disto, há deputados a querer fiscalizar o fiscalizador, atropelando os princípios da separação de poderes e da autonomia dos órgãos de soberania. E comentadores da moda a dizer que não estão descansados em relação à acção do juiz, só porque ele tem opiniões pessoais. Imagine-se que agora púnhamos em causa a decisão de juízes do Tribunal Constitucional que já emitiram opinião pessoal sobre a questão da eutanásia, ou outra qualquer polémica que tenha que ser dirimida no Palácio Ratton? Acho que estaríamos à beira de ter que acabar com o TC, porque ninguém seria verdadeiramente puro para exercer tão altas funções.
2 Deu brado, e teve consequências, a notícia de que o vereador da Proteção Civil da Câmara Municipal de Lisboa tinha sido vacinado no seu gabinete, com sobras de uma leva de vacinas destinadas a lares de Lisboa.
O escândalo é bom. Dá um bom título e origina reacções na restante imprensa. Mas aquilo que se exigiria ao jornalista era que questionasse: quem é este Vereador? O que faz? Quais os riscos que corre no exercício das suas funções? Sobre isto nada li nem ouvi. Apenas que se tratou de mais um caso de aproveitamento ilícito de vacinas disponíveis.
O vereador Carlos Castro esteve desde o início da pandemia na primeira linha de acção. Qualquer incidente na capital relacionado com surtos de Covid-19, ou com a aplicação no terreno de medidas preventivas, exigiu a sua presença. Foi o caso na evacuação da pensão da Almirante Reis, quando se detectou um surto com imigrantes, ou de toda a operação relacionada com a instalação do hospital de campanha em Lisboa.
Se há político no activo que devesse ser vacinado, não pela sua condição pessoal, mas pela exigência da sua tarefa, esse político era Carlos Castro. O facto de haver uma emergência na cidade e o vereador responsável não poder ir para o terreno é uma má notícia para os cidadãos.
Dirão alguns que o problema é ele ter passado à frente por não estar referenciado como prioritário. Eu acho que o problema é haver uma lista de políticos que são prioritários na vacinação e o nome do vereador da Protecção Civil da cidade de Lisboa não estar nessa lista. Admito que a minha opinião não seja consensual. Mas achava normal que a comunicação social, ao menos, colocasse esta questão em cima da mesa.
Jornalismo precisa-se com urgência. Não há democracia sem jornalismo, disso tenho a certeza. Felizmente ainda há bons exemplos, mas são cada vez menos. O drama desta circunstância é que, como todos já sabemos, as narrativas alternativas das redes sociais não são opção. Mas para garantir o direito à informação e à liberdade de opinião, é preciso que os meios de comunicação social façam um trabalho muito mais sério do que aquele que está a ser feito. O jornalismo não existe para bons títulos e muitos cliques.
Nota: Uma referência à indigitação de Pedro Caupers pelo PS para o TC estava errada e foi corrigida.