Há uma velha lei da economia e da demografia que diz que as pessoas, quando não têm os recursos ao alcance, vão atrás deles. A África, aqui mesmo a sul da Europa, com o Mediterrâneo pelo meio, passou este ano os 1.500 milhões de habitantes e a sua população vai continuar a crescer a largo ritmo; e os africanos, carentes de recursos nos seus países, vão recorrer à emigração para sobreviver ou para procurar uma vida melhor.

Considerações éticas e políticas à parte, e por tudo o que está para trás e pode estar para a frente, ajudar a criar nesses países infraestruturas, recursos sanitários e sociais, condições de produção agrícola e industrial que fixem as populações para evitar vagas descontroladas de migrantes parece ser o mais inteligente – mais inteligente, mais humano e mais civilizado.

O Plano Mattei

É essa a ideia da Presidente do Conselho de Ministros de Itália, Georgia Meloni, que nos finais do mês de Julho anunciou, em Roma, um grande Plano de Investimentos para o desenvolvimento dos países do continente africano.

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Não vi grandes referência entre nós a este Projecto, o que não surpreende, uma vez que chefe do Governo italiano é “fascista”, “populista” e de “ultra-direita” e, logo, uma criatura intrinsecamente perversa da qual não pode vir nada de bom. Entretanto, o projecto tem a bênção da Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres; e vai ao encontro do repto do Papa Francisco de “assegurar a todos o direito de não emigrar”.

O que me pareceu interessante foi, desde logo, o nome dado ao Plano, “Plano Mattei”.

Enrico Mattei foi um democrata-cristão, dirigente da resistência antifascista e fundador, em 1953, da ENI (Ente Nazionale Idrocarburi). A indústria petrolífera começara em Itália com a AGIP – Azienda Generale Italiana Petroli –, uma companhia pública fundada em 1926, em pleno vinténio fascista. Em 1945 Mattei foi encarregado de liquidar a AGIP e de proceder à sua privatização.

Mas Mattei tinha outras ideias para a companhia e fundou a ENI em 1953 como empresa nacional de petróleos: era uma empresa pública, tendo como símbolo o famoso cão negro de seis patas que lança uma língua de fogo encarnada. Com as boas relações pessoais e políticas de Mattei no Médio Oriente e na África do Norte a ENI tornou-se um importante player no mercado internacional petrolífero; mas em Outubro de 1962 o avião privado de Mattei explodiu e despenhou-se. Anos depois – dez, exactamente –, o realizador Francesco Rossi fez um filme, Il Caso Mattei, com Gian Maria Volontè no papel de Mattei, em que a morte do patrão da ENI aparecia ligada a interesses rivais, possivelmente das “Seven Sisters” americanas.

Mattei tinha ligações à Argélia independente, tendo ajudado a Front National de Libération na luta contra a França: era um homem que criara muitos e poderosos inimigos.

Ao escolher o fundador da ENI como “patrono” do plano, Meloni mostra não ter preconceitos ideológicos na hora de tratar dos interesses do Estado. A estratégia do projecto assenta na ENI, uma das maiores multinacionais mundiais de energia, hoje fortemente implantada em África, com uma vasta rede de empreendimentos de oil and gas, do Norte magrebino – Argélia, Tunísia, Líbia – à África Subsariana, incluindo Angola e Moçambique. O principal objectivo é instalar em África circuitos de produção agroalimentar e indústrias transformadoras que ajudem a fixar as populações, e pensar e planear infraestruturas internas de transporte que sirvam os portos do Atlântico e do Índico, por onde passará o comércio do continente.

Além disso, o Plano Mattei, em estreita colaboração com os governos europeus e africanos, prevê meios de controlo para reprimir o tráfico de emigrantes ilegais e as organizações criminosas que se ocupam dele.

A rivalidade Paris-Roma

Mas nem todos os países europeus veem com bons olhos este novo empenho italiano em África. É o caso de França, que se sentiu melindrada por Roma na sua aliança preferencial com a Tunísia quando Meloni levou a Tunis Ursula von der Leyen e o primeiro-ministro da Bélgica, Alexander De Croo, para assinarem, em nome da União Europeia, com o Presidente Kaïs Saïed um acordo de cooperação estratégico. O mesmo sucede com as entradas italianas na Argélia e em Marrocos, tanto mais numa altura em que a cooperação França-África atravessa momentos difíceis – com os golpes militares no Niger, no Burkina Faso e agora no Gabão. A isto acrescentem-se as entradas da ENI italiana, rival da TOTAL francesa no oil and gas.

Tudo isto decorre no quadro geral um tanto ou quanto frenético da substituição, na Europa, do petróleo e do gás russos. Foi por causa disso que, numa primeira fase, Meloni esteve na Argélia e na Líbia (com certeza recordando também a herança política e geopolítica de Mattei). Ora na Líbia, que está dividida e em guerra civil, italianos e franceses têm opções e amigos diferentes: a Itália apoia o Governo de Unidade Nacional do primeiro-ministro Abdul Hamid Dbeibah, a França apoia os seus inimigos.

A Líbia é o quarto produtor de petróleo da África, depois da Nigéria, de Angola e da Argélia, mas é possuidora de grandes reservas de crude. A Itália é o seu primeiro parceiro comercial e, em Janeiro passado, Meloni esteve em Tripoli, onde a ENI assinou projectos no valor de 8 mil milhões de Euros. O Governo de Dbeibah é reconhecido pela ONU e apoiado pela Itália, pela Alemanha, pelo Reino Unido, pela Turquia e pelo Qatar. O outro, o governo rival, liderado nominalmente por Fathi Bashagha, está baseado em Sirte, quartel-general do general Haftar, e é apoiado pela Rússia, pela Arábia Saudita, pelo Bahrein, pelo Egipto e… pela França.

Esta fractura entre membros da União Europeia e da NATO é mais um sinal da multipolaridade da nova ordem do mundo, uma ordem que deixou de ser a ordem internacional liberal, mas que se encontra, por agora, num interregno, com alguns espaços de caos. Um caos que só uma estratégia de empenhamento sério, económico-social, do mundo desenvolvido pode ajudar a superar. E para bem de todos.