Numa era marcada por avanços tecnológicos que estão a redefinir o que é ou não possível, assistimos a um desfasamento cada vez mais evidente entre o progresso tecnológico e o mundo político, ancorado em paradigmas ultrapassados. A revolução digital tem vindo a desencadear transformações sem precedentes, algo que contrasta com a estagnação das instituições políticas. No século XXI, ideologias seculares nascidas para funcionar como resposta às necessidades da era industrial ainda são as ferramentas predominantes para compreender e moldar o nosso futuro, apesar da desconexão crescente entre a evolução tecnológica e as respostas políticas.

Após décadas de crescimento económico que geraram expansão da classe média e redução da pobreza global, encontramo-nos num ponto de inflexão. As disrupções oriundas da revolução tecnológica e da sociedade da informação estão a ser absorvidas à margem do sistema político, com consequências ainda difíceis de prever.

O problema é real: as mudanças abruptas provocadas pelo digital estão a operar em grande medida fora dos limites do processo político tradicional. A incapacidade dos agentes políticos de compreender, e consequentemente responder às disrupções recentes tem resultado em medidas legislativas e políticas públicas que na maioria das vezes atrapalham mais do que ajudam. A rápida mudança tecnológica supera a capacidade de resposta da legislação e das políticas públicas, exibindo um descompasso alarmante entre a realidade emergente e as estruturas de governação existentes. Este desfasamento é um dos principais fatores para o crescente descontentamento dos cidadãos. Os sistemas políticos, esvaziados de eficácia e alheios à realidade, tentam manter-se recorrendo a narrativas desconexas, distantes do quotidiano das pessoas. A alienação do sistema político é notória e percebida pela população, que tem vindo a perder progressivamente a fé nas velhas narrativas ideológicas: após um período de desinteresse e distanciamento, vivemos agora num clima de desilusão e raiva, um reflexo dos fracassos das ideologias tradicionais em enfrentar as complexidades do mundo moderno.

Acresce que após décadas em que as democracias liberais e os Estados de Direito conseguiram no Pluralismo equilibrar as diferenças existentes entre si, um vazio ideológico está a patrocinar, paradoxalmente, um retorno às barricadas ideológicas. Tal resulta, sobretudo, porque as sociedades têm horror ao vazio, sendo reflexo do anseio humano por certezas e estruturas sólidas em tempos de incerteza. As soluções propostas pela maioria das forças políticas, porém, não passam de clichês e slogans, sem aderência à realidade ou capacidade de enfrentar os problemas emergentes, o que só reforça a saturação em relação à política. Boa parte deste problema é agudizado pelo “modus operandi” das redes sociais, que em tudo facilitam a polarização, o egocentrismo e a fragmentação em bolhas de opinião.

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As eleições de 10 de Março de 2024 ocorrerão neste contexto, com um eleitorado cético em relação às soluções políticas tradicionais, enquanto os partidos políticos do arco da governação parecem perdidos, sem saber como responder aos anseios da população.

Sendo justos, a conjuntura favorece os partidos de protesto, em particular aqueles que se apoiam no nacionalismo e em soluções socialistas simplistas. A incerteza quanto ao futuro e o generalizado descontentamento ajudam à afirmação de líderes carismáticos e arrogantes que, com retórica inflamada, transmitam a ilusão de terem todas as respostas. A polarização e a exploração do medo são evidentes em partidos como o Chega e o Bloco de Esquerda, que procuram capitalizar a desconfiança e aversão às forças políticas tradicionais.

O cenário atual solicita novas abordagens políticas e ideológicas, capazes de enfrentar eficazmente as novas realidades. As divisões “esquerda-direita” ou a tríade “liberalismo-socialismo-nacionalismo” demonstram-se hoje insuficientes, só por si, para responder aos problemas que enfrentamos. É necessário, por isso, um pensamento mais flexível e adaptativo, que construa a confiança necessária para formular políticas públicas num contexto de incerteza. Na falência relativa das ideias políticas e das correntes herdadas das Revoluções Industriais — Nacionalismo, Socialismo e Liberalismo —, esta última surge, apesar das dificuldades, como a mais apta a assumir um papel de liderança, por ser a que melhor compreende e valoriza a liberdade individual, os direitos humanos e os fundamentos da democracia. Refiro-me aqui a um liberalismo amplo, enquanto tradição de pensamento, e não às abordagens mais ideológicas ou identitárias que, por estarem datadas no tempo, não respondem adequadamente aos desafios políticos contemporâneos. O combate será travado contra os socialismos e nacionalismos, historicamente recuperados sempre que há espaço para capitalizar no medo e na incerteza.

O desafio, hoje, para as democracias liberais está em conseguir adaptar os seus princípios fundamentais às novas realidades e desafios emergentes, assegurando que os benefícios da tecnologia são amplamente partilhados e que as respostas do sistema público são profundamente melhoradas, no respeito pelos valores fundamentais conquistados a pulso contra as tiranias nacionalistas e socialistas, que nunca deixaram de estar à espreita. Estas respostas não podem, preguiçosamente ou por tática, adormecer nas soluções desenhadas para um tempo que está a desaparecer muito rapidamente; recuperar a credibilidade da política e a sua utilidade exige a construção de programas políticos que abracem a incerteza, que sejam capazes de ouvir e interpretar a realidade, sem ceder ao pragmatismo desenfreado, mas também sem alienar as soluções de um mundo que necessita, mais do que nunca, de políticas que verdadeiramente resolvam os problemas das pessoas, construídas sem tabus. Uma larga maioria do eleitorado exige respostas claras para o funcionamento da saúde e da educação, para o funcionamento da administração pública, para uma tributação mais realista, para o futuro do emprego e do crescimento real dos salários, para a habitação e para os transportes, mas também para o que tudo isto representa hoje, longe das receitas de cartilha que serviam (ou não) para o passado, mas que não atendem aos tempos da revolução tecnológica. A mera repetição de conteúdos de manuais dos anos 40 a 60 do século passado, ou o mero libelo acusatório do “radical és tu” que domina hoje um debate político altamente infantilizado, apenas acentua o vazio, abrindo espaço para as demagogias de quem finge que tudo sabe e tudo vê na oferta populista. Pensar as carreiras dos profissionais da saúde ou da educação, e as suas aspirações, o financiamento de hospitais e escolas, a tramitação da Justiça, ou as políticas de habitação, segundo os modelos esgotados hoje em funcionamento, nada irá resolver, pelo que precisamos de quem seja capaz de ouvir, mas também de decidir, para os tempos que estão para vir, sem medos ou preconceitos.

Em suma, estamos num momento decisivo, onde a capacidade de renovação política será tão crucial quanto a inovação tecnológica. É tempo de olhar para além das velhas narrativas e abraçar sem complexos soluções políticas que estejam à altura dos desafios do nosso tempo. Só assim se combatem os extremos e os totalitarismos do passado que recuperaram o seu fôlego na saturação e no medo.