O Brasil está literalmente a ferro e fogo. Primeiro, o terrível incêndio que devastou o Museu Nacional do Rio de Janeiro, assumido simbolicamente pelas elites culturais como um atentado, que é de facto, à identidade brasileira, cometido durante décadas pela incúria das instituições responsáveis; e dias mais tarde, foi o ferro do punhal empunhado por um tresloucado com alegadas «origens esquerdista» (PSOL) que feriu gravemente o candidato presidencial de extrema-direita, Jair Bolsonaro, o melhor posicionado nas sondagens a seguir ao Lula preso e interdito pelos tribunais de se candidatar.

Há muito que a temperatura política, os ódios e a busca de culpados, não eram tão altos no Brasil, conforme está a acontecer em boa parte do mundo, mesmo quando a hostilidade se exprime silenciosamente, como é o caso em Portugal, através da abstenção maciça. Um ponto relevante no que diz respeito ao Brasil é o facto de a enorme violência prevalecente nas relações pessoais e comunitárias estar, na maior parte do tempo, separada da vida política. Ora, o que está a acontecer desde as manifestações espontâneas de 2013 contra a governação PT é a politização da violência e, desde o afastamento da presidente Dilma em 2016, a frequência crescente da violência verbal e até física na luta política.

Um estudo admirável de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata (1969), mostrava já de que modo a violência física foi historicamente interiorizada no Brasil pelos «homens livres» como algo de individual e desligado da dominação da oligarquia política, de algum modo ainda vigente, seja em ditadura como na própria democracia.

Com o crescimento económico e o aumento da alfabetização, mas também com a estatização do clientelismo e com o alastramento da corrupção partidária, essa violência recalcada não só se difundiu como se politizou e partidarizou! É perante isto que o eleitorado brasileiro se encontra hoje, exprimindo intenções inéditas de abstenção nas eleições presidenciais daqui a menos de um mês, enquanto a lista de candidatos se fragmentou com o provável afastamento de Lula dos presidenciáveis.

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Sucede que a edição brasileira de El País começou a financiar um tipo de estudo eleitoral semelhante àqueles que faz em Espanha, mediante o qual a empresa incumbida do estudo elaborará em permanência uma média ponderada das sondagens mais rigorosas daqui até à votação, ao mesmo tempo que fará o seu monitoramento através de entrevistas em tempo real.

Com os primeiros dados desse estudo, verifica-se que Lula leva um avanço de quase 16 pontos percentuais à frente dos 20% que Bolsonaro tinha antes do atentado de que foi vítima. Ora, não só tudo leva a crer que Lula não será autorizado a candidatar-se, como já há indícios de que Bolsonaro beneficiou – se assim se pode dizer – com o atentado. No caso de um antigo prefeito de S. Paulo, o universitário Fernando Haddad, ter de substituir Lula como candidato à presidência do Brasil, ficamos a saber que este tinha há uns dias cerca de 4% das intenções de voto e, conforme os observadores, não chegaria à 2.ª volta (a 28 de Outubro) ou teria de se bater com Bolsonaro…

Ora, é necessário contextualizar a candidatura escolhida por Lula para o substituir. Lula já errou quando escolheu Dilma. Esta ainda foi eleita em 2010 mas em 2013 o modelo governativo clientelar do PT estava esgotado e Dilma foi posta em cheque pela inédita vaga de protestos desse ano. Depois, seguiu-se a vitória tremida de 2014 e, finalmente, o impeachment em 2016… Ora, Haddad nunca teve a projecção de Dilma nem a situação actual é comparável às anteriores. Acontece que jornalistas como os do «Público» repetem o erro de pensar que «o Nordeste é o bastião tradicional do PT»… Não: Lula foi eleito pelos estados do sul do Brasil contra o «grotões» do Nordeste, então enfeudados aos caciques conservadores. O Sul desenvolvido e informado é que era «bastião do PT» e a mudança de base eleitoral é, juntamente com a corrupção e o clientelismo, o principal sinal de que o PT de hoje tem muito pouco a ver com o partido diferente, moderno e avançado que chegou a ser.

A «conquista» do eleitorado nordestino deve-se, como é sabido, à multiplicação da chamada «bolsa-família» — uma variante do «rendimento mínimo» — e foi isso que deu a vitória a Dilma por 3% em 2014 contra todos os estados a sul da linha Norte-Nordeste… Acontece que Haddad não tem o perfil nem o «carisma» de Lula. Uma vez mais: é uma má escolha de Lula que pretende que os seus indigitados fiquem presos a ele. É possível que Haddad recupere algo do voto clientelar do Norte-Nordeste mas é improvável que recupere o que perdeu em S. Paulo há dois anos. Para a semana tentaremos sondar qual será a melhor «chapa» presidencial para derrotar Bolsonaro. E será que, pela primeira vez, o PT e o PSDB não terão candidatos elegíveis desde a vitória de Fernando Henrique Cardoso em 1994?