Uma crítica inédita em quê?
Alguns dos 67 críticos das teses de Riccardo Marchi sobre o Chega reagiram indignados às críticas de que foram alvo. Negaram qualquer intenção censória e acusaram, por seu turno, os críticos do dito manifesto, entre os quais me incluo, de os quererem censurar. Percebo que esta polémica comece a maçar, mas parece-me ser importante esclarecer alguns aspetos da mesma. Para isso é fundamental responder às seguintes perguntas: O que tem de inédito a crítica dos 67? O que justifica falar de uma cultura censória à maneira norte-americana? Qual a relevância de tudo isto, a ponto de justificar um regresso ao assunto?
A minha crítica ao manifesto dos 67, o temor de que terá um impacto censório, independentemente das intenções dos seus subscritores, resulta do seu formato inédito e do seu alvo inédito. O que é novo na história portuguesa, pelo menos no período democrático, é um ataque de dezenas de académicos à presença em condições normais de um outro académico no espaço mediático, nomeadamente na televisão pública. Esta não é, como alegou Daniel Oliveira, uma crítica corriqueira de uns académicos ao trabalho de outros académicos a qual nunca poderia ser confundida com uma cultura censória. Aliás, nesse mesmo texto, que tem a mais-valia de ser uma crítica com base na leitura do livro de Marchi, Daniel Oliveira aponta honestamente para os dois aspetos invulgares da crítica dos 67: tratar-se de um texto assinado por muitas dezenas de autores e que se foca nas entrevistas dadas pelo autor e não no conteúdo da obra, que, dizem, não leram. Mas Daniel Oliveira opta depois por desvalorizar estes aspetos como uma mera infelicidade ou injustiça, quando eles são fundamentais para caraterizar esta crítica como um sinal preocupante de uma cultura censória emergente.
Os únicos casos semelhantes que me ocorrem de denúncia por grupos de académicos de um outro académico por se ter desviado da linha justa são de regimes ditatoriais. E a resposta evidente a este formato de crítica vem de um desses exemplos: Albert Einstein, em reação a uma carta pública denunciando as suas teses assinadas por muitos físicos mais ou menos ilustres da Alemanha nazi, terá respondido que, se estes tivessem bons argumentos, bastaria um texto por um deles. E a questão que temos de colocar é precisamente essa: porque é que não bastou o texto assinado por um, dois, três destes académicos para criticar as teses de Marchi? Poderiam ter publicado dezenas de críticas detalhadas, aprofundadas, escalpelizando o livro a uma ou a várias mãos. Em suma, se o objetivo dos 67 era levar a cabo uma crítica normal a outro académico, então, manifestamente, escolheram o formato errado. Este não é, evidentemente, o formato normal de uma crítica normal a uma tese de um autor de que se discorda.
Mais: é verdade que o texto dos 67 deixa claro que não quer ser visto como uma crítica a um autor particular. Também isto tem alimentado alguma confusão, com a alegação de que não se trata de um ataque pessoal a Riccardo Marchi. Essa preocupação é pouco credível, face à acusação de que o autor teria como intenção branquear o fascismo e o racismo do Chega. O que fica claro no texto dos 67 é que o alvo do texto não é apenas Marchi, mas sim um sistema mais amplo: “Esta não é uma crítica pessoal. Sabemos que este tipo de posições inscreve-se nas continuidades históricas e estruturais antidemocráticas e coloniais.” Esta uma característica central da atual cultura censória à maneira norte-americana: o indivíduo é apenas um meio para atingir o sistema, a estrutura.
Percebo que se duvide do impacto censório desta posição de um grupo de académicos no país “real”, da mesma forma que se pode duvidar da sua eficácia no combate ao racismo ou ao Chega. Mas a situação é diferente no meio universitário. Alguém acredita que um jovem investigador interessado no estudo da direita radical, ou do racismo ou do colonialismo, vai olhar para esta frase desta massa compacta de 67 académicos e vai concluir que estes são campos que pode explorar livremente e em que pode defender publicamente as teses que entender mais justificadas? É claro que é sempre necessária alguma coragem para lidar com temas controversos. (Quanto a trolls e outras ameaças à liberdade de expressão cabe essencialmente às instituições, inclusive públicas e até policiais, dar-lhes a resposta adequada.) Porém, seria bom que académicos em posições de poder na universidade evitassem criar um clima que possa levar à autocensura. Seria bom evitar dar azo à ideia de que há uma cartilha ideológica que é preciso seguir, se não quisermos fechar a priori a investigação sobre temas muito relevantes.
O que nos importa uma nova cultura censória “à americana”?
Pouco ou nada, talvez, se ela se ficar pelos EUA. Mas os EUA têm uma grande capacidade de exportação cultural. Por isso, têm exercido uma enorme influência na cultura europeia ocidental das últimas décadas, e uma estranha fascinação mesmo nos seus críticos. Também aqui houve lugar a equívocos. Traduzi por cultura censória o termo comumente usado nos EUA de cancel culture. Este é um conceito novo, que corresponde, admito que de forma imprecisa, a uma tendência censória nos EUA que se tem acentuado nos últimos anos em nome do bom combate ao racismo e ao sexismo. Esta tendência iliberal que começa a chegar à Europa tem as suas formas mais evidentes e mais sérias no cancelamento de oradores impopulares nas universidades, ou na procura de se forçar o despedimento sumário de comentadores, professores ou outros. A autocensura, porém, também é outras das suas manifestações preocupantes. Quando autores ideologicamente tão diferentes como Noam Chomsky e Anne Applebaum, Salman Rushdie e Francis Fukuyama se queixam desta crescente cultura censória nos EUA creio que devemos prestar atenção.
Estamos longe de uma cultura censória semelhante em Portugal? Espero que sim. Porém, mesmo nos EUA pode-se legalmente publicar textos controversos à luz da nova cartilha ideológica, desde que se (possa e) esteja disposto a pagar o preço por isso. Em Portugal, cabe notar que o meio académico e jornalístico é, em todo o caso, bem mais precário do que nos EUA, e nele não abundam dinheiro ou alternativas. Como historiador estou bem ciente de que Portugal não precisa de exemplos vindos de fora para censurar pessoas ou promover a autocensura. Estou igualmente ciente de que a censura não é exclusiva de regimes ou de ideologias de esquerda ou de direita. Mas não me parece que seja uma mera coincidência que este texto dos 67 surja neste momento. Parece-me evidente a sua inspiração no que se passa nos EUA.
Contra uma universidade e uma imprensa serviçais
Os 67 podem criticar Riccardo Marchi, podem denunciar o racismo ou o Chega? Evidentemente que sim. Ninguém, que eu saiba, defendeu que estes académicos não podiam publicar as suas críticas ao que entenderem. Já o fizeram muitas vezes no passado, aliás, sem suscitar as críticas que agora ocorreram. O estudo exploratório do Chega por Marchi tem fragilidades que o próprio reconhece. O que me preocupa são, portanto, as implicações mais amplas desta crítica inédita em formato de manifesto dos 67 à presença mediática de um autor.
Podem os 67 ser criticados pelo conteúdo e pela forma da sua crítica? Espero bem que sim. Se há liberdade de crítica a Marchi, terá de haver liberdade também para discutirmos o texto dos 67. Como espero ter deixado claro nos parágrafos anteriores, não devem ter olhado com atenção para o texto dos 67 aqueles que defendem que não há nada de novo aqui, que são só académicos a criticar, como de costume, um outro académico. Trata-se do anúncio num formato inédito de um combate mais amplo contra uma estrutura, um sistema alegadamente colonialista e antidemocrático.
Admito que nem todos os 67 adiram a uma agenda de criação de uma nova hegemonia cultural, alinhada com a cultura censória à maneira norte-americana. Porém, o texto tem o conteúdo e, sobretudo, o formato certo para ter um impacto censório, sobretudo entre investigadores mais jovens.
Já vimos a imprensa e a universidade ao serviço da “Nação” durante o regime salazarista. Já vimos a universidade e a imprensa ao serviço do “Povo” durante o PREC. Espero que sejamos todos poupados a ver a universidade e a imprensa ao serviço de uma nova cartilha ideológica que imponha um entendimento único do antifascismo, do anticolonialismo ou do antirracismo.
Bruno Cardoso Reis (no twitter: @bcreis37), historiador, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e João Diogo Barbosa. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.