Ainda há muito por esclarecer no que toca à pandemia que mudou a vida de todos nós há cerca de um ano. A boa notícia é que, a cada dia que passa, o conhecimento científico sobre este vírus cresce. Foi graças a estes avanços que em menos de 12 meses se desenvolveu uma vacina e que grande parte dos nossos profissionais de saúde e idosos já foram vacinados ou sê-lo-ão em breve. Esperaria, naturalmente, que as decisões de saúde pública tomadas num contexto pandémico fossem guiadas pelo conhecimento e não de forma cega pelo medo e por informação desatualizada. Rapidamente percebi quão iludida estava.

Testei positivo para o vírus no passado dia 11 de Janeiro de 2021. Cumpri o meu dever de isolamento profilático e tive alta uns dias depois, de acordo com as diretrizes atuais, essas sim, baseadas em factos: no caso de pacientes assintomáticos ou com sintomatologia ligeira, considera-se que 10 dias após a manifestação dos primeiros sintomas a probabilidade de contágio se torna extremamente reduzida e que o paciente pode então retomar a sua vida normal1. O meu namorado, que vive comigo, foi testado um dia depois de mim e o resultado foi negativo. Cumpriu, naturalmente, o período de quarentena de 14 dias decretado pelas autoridades competentes. Tendo em conta que vivemos na mesma casa e que não realizámos isolamento um do outro, seria pouco provável ele não ter ficado infetado, embora tecnicamente possível: dado que o seu teste foi feito apenas um dia após o meu (por indicação da Saúde 24) poderia não ter ainda cópias suficientes do vírus para obter um resultado positivo. De qualquer forma, manteve-se totalmente assintomático durante o período de quarentena. A primeira coisa que nos veio à cabeça foi a seguinte: será que o Francisco já teria tido Covid-19 no passado, de forma assintomática, e que quando eu estava infetada ele já estaria imunizado? Seguiu-se então a realização de um teste serológico no dia 27 de Janeiro, que acabou por confirmar as nossas suspeitas: o Francisco possuía anticorpos de longa duração (igG) contra o vírus. A nossa teoria parecia ter suporte, encerrámos o assunto e seguimos com as nossas vidas, descansados.

No dia 26 de Março, mais de dois meses depois do primeiro episódio desta saga, o descanso foi rapidamente substituído por pânico. A dois dias de realizar uma viagem internacional, fiz um teste PCR com a finalidade de embarcar no voo. Os meus planos tremeram quando o resultado foi… positivo. Após momentos iniciais de total incredulidade, acalmei-me e comecei a raciocinar. O que este resultado queria provavelmente dizer é algo que está extensamente descrito na literatura: eu continuava a ter no meu organismo uma quantidade insignificante de cópias não-replicantes e totalmente inócuas do vírus. Trocado por miúdos, isto significa que passado todo este tempo, o meu nariz e garganta ainda tinham “restos” do vírus, parcialmente destruídos e sem qualquer capacidade infecciosa. Nada mais nada menos o que o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos da América diz, com todas as letras, que um PCR positivo num intervalo de 90 dias após infeção deve ser considerado como restos de material genético, inócuos e sem qualquer significado clínico ou epidemiológico, e não como uma reinfeção2. E agora? Como vou embarcar? Se embarcar, estarei a cometer um crime? O que digo quando me ligarem do centro de saúde? Entrei em modo problem solving: contactei a minha médica assistente que, impávida e serena, rapidamente me pediu para verificar se o país de destino aceitava testes rápidos além de testes PCR. Aceitava, realizei um teste rápido no próprio dia, o qual teve resultado negativo. Ligaram-me do centro de saúde, expliquei a situação e foi-me dada alta no mesmo instante, junto com votos de boa viagem. Embarquei rumo ao meu destino, munida do meu teste rápido negativo “Problema resolvido!”, pensei eu. Mas não. Portugal apenas aceita testes PCR para entrada no país. Isto significa que se eu continuasse a ter um PCR positivo na data do voo de retorno (cerca de uma semana depois da partida), perderia o meu voo, ficando retida num país estrangeiro. Como poderia um país negar entrada a um cidadão nacional com base num critério tão redutor quanto um teste molecular, sem sequer se dignar a olhar para o contexto clínico e epidemiológico? É de salientar que tinham sido as autoridades de saúde pública portuguesas a dar-me alta médica uma semana antes. Como poderia o país que me deu alta considerar-me infetada e negar-me o embarque? Todo este filme que se criou na minha cabeça se desvaneceu quando, a meras horas do voo de retorno, o PCR que realizei para embarcar teve resultado negativo. Aterrei em Portugal e julguei que o assunto estivesse definitivamente encerrado. Estava, uma vez mais, redondamente enganada.

Na semana seguinte ao meu retorno ao país, saiu a sorte grande ao Francisco: um dia antes de um voo para atender a um compromisso internacional, o seu PCR teve um resultado positivo. Revivi a situação por mim vivida há poucos dias atrás, com a agravante de que a situação do Francisco se veio a revelar bastante mais complicada: o país de destino não aceitava testes rápidos. Não havia volta a dar, sem ser realizar um novo PCR e rezar para que este viesse negativo. Quando uma pessoa já não se encontra na fase contagiosa da doença, passados meses da infeção, é bastante comum que os resultados dos testes PCR oscilem. Isto deve-se ao facto de a carga viral existente no corpo da pessoa ser extremamente baixa, o que faz com que por vezes o vírus seja detetado e outras vezes não. O segundo PCR, realizado no mesmo dia, deu negativo. Mais uma vez, “situação resolvida!” voltámos nós a pensar, ingenuamente. Mas não: como o Francisco nunca tinha tido um PCR positivo na altura em que eu estive, de facto, doente, foi diagnosticado com Covid-19 e posto em isolamento profilático, mesmo perante todos os indícios que sugeriam que já teria estado infetado e ficado imune. O teste serológico que comprova o facto de o Francisco já ter tido contacto prévio com o vírus, bem como todo o contexto que aponta para uma situação inócua, exatamente igual à minha, foi totalmente desconsiderado pela unidade de saúde pública. As autoridades competentes ligaram a todas as pessoas com quem ele teve contactos próximos e decretaram-lhes um período de quarentena de 14 dias. Tendo em conta que vivemos na mesma casa, sabia que seria igualmente contactada. Organizei o meu discurso e pensamento de forma a ficar preparada para conseguir explicar a minha situação de uma forma coerente e estruturada (por esta altura, explicar toda a história do início numa chamada telefónica sem parecer maluquinha tornou-se num verdadeiro desafio).

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Tal como na véspera do meu voo, em que após a análise do quadro clínico a minha médica de família me deu alta, supus que o mesmo aconteceria agora; não só o teste positivo do Francisco não parecia traduzir uma infeção ativa ou com risco de contágio, como eu já tinha sido infetada pelo vírus, estando à partida imune. Ligaram-me, sabiam que eu já tinha estado infetada, mas afirmaram que o meu período de imunidade tinha expirado há precisamente dois dias, 90 dias após o primeiro PCR positivo. Com base neste critério surreal, foi-me igualmente decretada uma quarentena de 14 dias. Não queria acreditar no que estava a ouvir. Será possível, genuinamente, achar-se que precisamente há dois dias atrás os meus anticorpos contra os vírus fizeram as malas e foram embora do meu corpo? Foi-me dito, palavra por palavra, que se tudo isto se tivesse passado há dois dias, não me teria sido decretado um período de quarentena. Saliento que se julga existirem cerca de 70 casos de reinfeção documentados e comprovados no mundo inteiro, sendo zero destes em Portugal3. Além disso, estamos a falar de uma pessoa saudável e sem qualquer sintomatologia.

Sei perfeitamente que as pessoas que me comunicaram a decisão de me pôr novamente em quarentena não acham que isto seja um procedimento razoável. Aliás, fizeram questão de salientar que apenas se limitavam a comunicar a decisão. O meu ponto é precisamente esse: à luz dos conhecimentos atuais, um PCR para deteção do vírus SARS-CoV-2 não pode ser cegamente sinónimo de um diagnóstico de Covid-19, especialmente no caso de pessoas que já tenham sido infetadas no passado. Utilizar este critério de forma exclusiva para decretar uma medida que põe em pausa a vida de uma pessoa, é fazer uma interpretação altamente redutora e simplista de uma patologia muito complexa. Os contextos clínico e epidemiológico têm de ser levados em conta ao decretar o isolamento profilático ou quarentena a um cidadão. Esta situação teve um impacto totalmente desproporcional na minha vida e na do Francisco, que se resume a milhares de euros perdidos em rendimentos por serviços não prestados, dezenas de horas em “prisão domiciliária” totalmente injustificada e pedidos envergonhados aos vizinhos para nos levarem o cão à rua. Tínhamos esperança de que os nossos médicos de família conseguissem reverter a situação. A médica do Francisco mandou-o fazer mais um PCR, o terceiro num espaço de dois dias. O resultado? Negativo. Ainda assim, a situação não foi revertida. À data, não parece ser possível livrarem-nos deste isolamento meramente burocrático, mas, até indicação em contrário, tentar que assim seja será, certamente, o meu novo passatempo para os 13 dias de quarentena que me restam.

(1) C. Rhee, S. Kanjilal, M. Baker, and M. Klompas, “Duration of Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2) Infectivity: When Is It Safe to Discontinue Isolation?”. Clin. Infect. Dis., Agosto, 2020. doi: 10.1093/cid/ciaa1249.
(2) The United States Centers for Disease Control and Prevention, “Interim Guidance on Duration of Isolation and Precautions for Adults with COVID-19”. 2021. (Consultado a 15 de abril de 2021)
(3) BNO News, “COVID-19 reinfection tracker”. 2020. (Consultado a 15 de abril de 2021)