Agora foi a vez da TVI. Há anos que os amantes de Salazar e da ditadura tentam fazer dele um galã, um sedutor irresistível não só para as senhoras do regime, mas para toda e qualquer esposa, mãe ou rapariga solteira de Portugal continental e ultramarino. Trataram mesmo, e desde os anos 50 de internacionalizar o mito, imagine-se, com uma francesa. As famosas francesas de tão bom gosto e estilo, fariam certamente mais efeito que uma governanta portuguesa, ou uma senhora do Movimento Nacional Feminino.

A tentativa de deitar por terra a castidade do ditador já vem de António Ferro que bem se esforçou por transformar o «Botas» num irresistível sedutor. Essa tentativa foi passando por diversos propagandistas/políticos do anterior regime, como Moreira Batista ou pelas memórias escritas de ex-ministros ou ex-embaixadores, com relatos das encomendas recebidas para a compra de prendas destinadas às seduzidas do presidente do Conselho.

Nunca conseguiram. A imagem não cola com o ditador tacanho e provinciano, sem mundo, rodeado de pides e fechado na residência oficial, saindo apenas para as longas viagens a Santa Comba…

Mas, curiosamente, os amantes ou os saudosos do antigo regime insistem e vão publicando livros e filmes e reportagens, em vão. Nos anos 50, foi certamente uma necessidade mudar a imagem de Portugal e do seu ditador. Vivia-se a alegria do pós-guerra e era preciso maquiar o regime. Todos os ditadores o fizeram. Os documentários sobre Salazar, incluindo a famosa manifestação de 1959 das «mães, esposas e filhas» do regime, eram uma constante nos cinemas, antecedendo todo e qualquer filme.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Agora, foi a vez da TVI apresentar Salazar como um grande sedutor fotografado com a francesa que se prestou a isso, como um galã. E a TVI explica que o autor da reportagem é o grande fotógrafo amador: o agente da Pide Rosa Casaco.

Casaco é apresentado como um fotógrafo que «apanhou» Salazar e Christine em românticas, comprometedoras e secretas poses.  Nunca diz a reportagem que Rosa Casaco foi um dos mais sinistros agentes da Pide e que foi ele que organizou, dirigiu e participou pessoalmente no assassinato de Humberto Delgado.

Aliás, o Rosa Casaco que fugiu de Portugal logo a seguir ao 25 de Abril foi julgado à revelia pelo assassinato do General Sem Medo e da sua secretária pessoal, a brasileira Arajaryr Campos – ambos atraídos para uma cilada fatal, perto de Badajoz, como é sabido.

Mas não ficou por aqui a reportagem da TVI a pintar a cor de rosa o pide que tanta gente torturou. Apresentou-o como tão bonzinho, que além de ter feito umas fotografias, surpreendendo Salazar e a madame a passear entre camélias, sentados nas escadas da casa do ditador (certamente sem saberem que um paparazzo os seguia), ainda o apresentou como um pide que dispensou um agente que maltratou e bateu num menino da vizinhança.

Rosa Casaco foi dos mais escabrosos e brutais agentes da Pide, que comandava interrogatórios a presos políticos. Não era um simples agente de brigadas de rua. Dirigia interrogatórios e torturava presos na António Maria Cardoso, mandava continuar ou parar torturas, como a do sono.  Todos os presos políticos que por lá passaram conheciam o seu nome e a sua triste fama e sabe-se como foi diligente e brutal até à queda do regime, em 1974.

Curioso teria sido se a reportagem da TVI confrontasse os espectadores com a realidade tantas vezes escrita e comentada de que os grandes responsáveis dos regimes ditatoriais são pessoas como as outras e, por isso mesmo, mais perigosos. Rosa Casaco gostava de fotografia como o SS que comandava Auschwitz, gostava de rosas e tratava delas no intervalo do almoço, ou como Béria que gostava de ver filmes com Estaline, ou Hitler que pintava quadros.

No ano em que são feitas  as fotografias de propaganda do regime pelo pide Casaco com a «jornalista» francesa, que aceita este triste papel, funcionava — para escândalo do mundo saído da II Guerra Mundial e a viver a alegria da vitória –, além das cadeias de Peniche, de Caxias e do Aljube, o Campo de Tarrafal em Cabo Verde que só veio a ser encerrado, por pressão internacional, em Janeiro de 1954, tendo sido apenas reaberto por Adriano Moreira, Ministro das Colónias, em 1961, para presos das ex-colónias, sobretudo da Guiné e de Angola, mas já sem portugueses.

Neste caso, a tentativa de apresentar Oliveira Salazar como bucólico galã de Santa Comba, levou mesmo a que a reportagem da TVI, diga-se que sem novidade, apresentasse a governanta do ditador como uma inteligente guardiã do Presidente do Conselho, frequentadora de recepções e mundana de leque em punho.

Lembro-me bem, logo a seguir ao 25 de Abril, das memórias dos contínuos de São Bento, relatando que a Dona Maria vendia ao sábado no palácio as galinhas criadas nos galinheiros de São Bento, mortas, depenadas e pesadas numa balança de cozinha que por lá andava. Cada contínuo só podia comprar metade da ave porque eram muito baratinhas e criadas a milho.

Esta recordação é mais compatível com a imagem de D. Maria do que transformá-la numa misteriosa governanta. O mesmo se pode dizer do pide Casaco convertido num fotógrafo de génio, ou a francesa em jornalista. A juntar a tudo isto a reportagem, pasme-se, retrata Silva Pais, chefe máximo da Pide, como pai da filha fugida para a revolucionária Cuba e, imagine-se, visitante clandestino da Ilha de Fidel.

E Salazar? O ditador sombrio e sinistro que nos tirou a liberdade, fez o país miserável, as mulheres seres de segunda (para eles a quarta classe e para elas bastava a terceira), que nos sujeitou a três guerras coloniais, submeteu Portugal à censura e ao medo da Pide, é transformado num sedutor incorrigível a quem pretendem retirar o mito da castidade e do celibato, e substituir por algo mais moderno e apresentável, assegurando que, no fundo, morria de amores por qualquer uma que lhe passasse por perto.

A entrevista recorreu mesmo a lindos poemas de sua autoria, tendo sido lido um que não era mas podia ter sido dedicado a qualquer bela francesa. O poema de Salazar, declamado na TVI por um actor a imitar-lhe a voz, foi, sem dúvida o momento mais comovente e ridículo da reportagem.

Uma conclusão há a tirar destes titânicos esforços para mudar o passado e esquecer a história: por mais que se esforcem cineastas, repórteres, escritores e memorialistas, a coisa não pega, o Botas é o botas de Santa Comba, sem ofensa para Santa Comba Dão.

Por último, sublinho que os que passam a vida a gritar, chamando tudo e todos de fascistas, calaram-se. Nem se manifestaram os indignados profissionais da esquerda de punho no ar.

Pois eu indignei-me mesmo e lembrei-me de em criança passar em Santa Comba, a caminho de Castelo Branco, e ver da janela do carro a guarda ao longo de vários cruzamentos e pontes, quando Salazar estava no Vimieiro. Recordo o meu pai a dizer baixinho, com a voz que nos marca a infância, «os piores são os pides que não têm farda». Metia-me medo aquela estrada e aqueles quilómetros que fazíamos depois em silêncio.

Veio-me à memória o medo e ao pensamento a vontade de contribuir para que não apaguem a memória.