Agora que Setembro começou, e que comecei a ler a Bíblia do início, faço por me preparar para um novo ano de trabalho. Na Igreja começou uma nova série de sermões chamada “Saber ouvir”, que é provavelmente a tarefa mais ambiciosa em que me meti desde que sou pregador. Isto porque sou um palrador nato, alguém com muita dificuldade com o silêncio. Como o povo costuma dizer, “perco muitas oportunidades para estar calado”. Não quero, por isso, entrar em época de São Tomás: faz o que ele diz mas não faças o que ele faz. Preciso das orações dos leitores em meu favor.

Claro que para a minha dificuldade com o silêncio contribui o excesso de ofertas para me exprimir. Posso dizer o que penso às pessoas que me cercam, posso dizer o que penso às pessoas que não me cercam, posso dizer o que penso em proximidade, posso dizer o que penso à distância. É difícil não poder dizer o que penso. E fico tão carregado de oportunidades de me exprimir que se torna quase impossível viver sem elas. Acabo reduzido ao tanto que posso dizer a partir do que penso. E quando falo no que penso, claro que falo também no que sinto. Sou uma máquina com recursos infindáveis para exprimir o que penso e o que sinto.

Também é à custa desta minha dificuldade com o silêncio que fui encontrando vocação como pregador, músico, escritor. Não saber estar calado dá profissão a uns tantos. Não saber estar calado paga as contas de alguma gente, mas até a gente a quem não paga as contas pode praticar a modalidade. Não saber estar calado é, por isso, não apenas uma condição minha, opinativo sentimental que sempre fui, mas é também uma condição em crescimento social visível. Até as pessoas mais sossegadas, e que sabiam aproveitar as oportunidades para estar caladas, agarram com cada vez menos embaraço este admirável mundo novo de infindáveis recursos para exprimirmos o que pensamos e sentimos.

O escritor inglês Carl Trueman tem chamado “expressive individualism” a este espírito dos tempos (no livro obrigatório que é The Rise and Triumph of the Modern Self). Individualismo expressivo, assim dito em português, não soa tão bem como expressive individualism. Mas, pronto, dá a ideia: o mundo tornou-se aquela canção da Madonna do “Express yourself”. Acho que haveria canções da Madonna mais interessantes para o mundo se tornar, como o “Like a prayer”, mas sei que sou tendencioso e que arranjo modo de tornar tudo religioso (esperem, verifiquei agora a letra do “Like a prayer” e retiro o que disse: não estou certo de que seria um grande negócio o mundo tornar-se nesta canção).

Como é que se sai desta overdose expressiva? Tenho uma teoria. Temos de desaprender a eficácia com que nos exprimimos. Alguém mais preocupado acusar-me-á: este sujeito quer que nos reprimamos! Acho que não é bem isso que sugiro. Sugiro antes o desmantelamento da poderosa indústria cognitivo-emocional. Sermos pessoas que pensam e sentem tanto levou-nos onde estamos. Um outro mundo é possível, como se dizia há uns anos. E a verdade é que foram pessoas como eu, privilegiadas na facilidade com que exprimem o que pensam e sentem, que construíram este sistema. Há um universo de gente que não sente a mesma pulsão para se exprimir a todo o custo que precisa de ser valorizado e defendido.

Logo, coloquemos grãos na engrenagem da nossa expressividade mecânica. Habitemos um mundo em que o silêncio possa ser uma resposta, tão ou mais eficaz. Experimentemos a emoção branda, desapaixonada, o desapego até. Democratizemos o mérito de, na possibilidade de nos manifestarmos, optarmos por passar. Eis um plano exigentíssimo para mim no início deste ciclo: responder com menos de mim e, espero, mais dos outros. No fundo, também é isso que está em causa em aprender a ouvir. A poderosa indústria cognitivo-emocional ama falar e odeia ouvir (ouvir os outros e ouvir até o silêncio). Suspeito que não sou o único a precisar desta desintoxicação expressiva.

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