A ciência não tem solução para o “problema dos três corpos”. Ao longo de séculos, vários matemáticos e astrónomos pensaram, meditaram e experimentaram para o tentarem resolver. Mas, vez após vez, não conseguiram. Para usar uma expressão célebre, o “problema dos três corpos” é “uma charada, embrulhada num mistério, dentro de um enigma”. E pode resumir-se desta forma simples: quando estamos perante dois corpos celestes — como o Sol e a Terra ou a Terra e a Lua — é possível prever os movimentos de cada um deles; mas, quando estamos perante três corpos celestes de massas semelhantes, os movimentos que eles fazem ao longo do tempo passam a ser inesperados, aleatórios e caóticos. Foram testadas várias fórmulas matemáticas complexas, mas a conclusão foi sempre deprimentemente a mesma: é impossível ter um sistema estável e previsível com três corpos igualmente grandes.

Em 2024, o “problema dos três corpos” transformou-se num fenómeno pop por causa da série da Netflix que adapta para a televisão um romance de ficção científica chinês que se transformou num íman de resistência ao regime comunista. Na história, uma raça alienígena que vive num sistema com três sóis (portanto, caótica) pretende conquistar a Terra para poder viver num planeta tranquilamente dependente apenas de um Sol.

Mas, em 2024, o “problema dos três corpos” também se transformou num dilema político. É que, pela primeira vez em muitas décadas, temos “três corpos” com uma massa semelhante no nosso sistema partidário: a AD teve 28,84% dos votos, o PS teve 28% e o Chega teve 18,07%. Desde as eleições, os movimentos dentro do regime passaram a ser, lá está, inesperados, aleatórios e caóticos.

Neste primeiro mês do governo, vimos o PS e o Chega a gravitarem à volta um do outro para aprovarem diplomas — como o do fim das portagens nas ex-SCUT — que possam causar instabilidade na AD. Mas, como acontece sempre no “problema dos três corpos”, essa trajetória não vai durar. Por uma razão simples: se a aliança informal entre Pedro Nuno Santos e André Ventura se prolongasse por demasiado tempo, um deles passaria inevitavelmente a ser o satélite do outro — e presume-se que nenhum deles aspire a tão triste destino.

Já começam a surgir ténues sinais de que as aproximações e os afastamentos podem variar muito rapidamente. Esta semana, por exemplo, houve negociações discretas entre o PSD e o PS para tentar um compromisso sobre a baixa do IRS, que poderia até deixar o Chega remetido ao espaço exterior. E nesta sexta-feira ouvimos o PS a elogiar aquilo que disse ser a “continuidade” de algumas medidas anunciadas pela AD para a habitação, pretendendo assim convencer os eleitores que o novo governo é apenas uma cópia fajuta do anterior.

A atual imprevisibilidade representa, como é evidente, uma ameaça para todos — para os eleitores, que não têm sossego; para a economia, que não tem estabilidade; e até para os próprios partidos, que não têm segurança. É que, com o tempo, os portugueses poderão querer voltar ao tempo mítico de paz e tranquilidade representado pelo bipartidarismo. Se isso acontecer, surgirá uma pressão irresistível para que um dos “três corpos” desapareça. Na série da Netflix, um dos personagens que espera a chegada dos invasores extraterrestres matuta, filosoficamente: “Somos lentos. Somos burros. Morremos facilmente. Somos insetos”. Entre o PSD, o PS e o Chega, alguém se arrisca a ser um inseto.

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