Em fevereiro deste ano a minha mãe partiu.

E partiu em ambiente hospitalar.

Confesso que o tempo de olhar apenas para as coisas leves e boas que lembro da minha mãe, passados 7 meses, ainda não foi ganho e precisa ser. Estes processos de luto são tramados. Mas algumas coisas positivas vão, de facto, surgindo e vindo à memória. E a memória é seletiva e danada em determinados assuntos. Noutros compensadora. Tenho poucas coisas boas a recordar aquando dos tempos em que a minha mãe passou no hospital. Porque o quadro era de dor total. Vê-la sofrer, ouvi-la dizer “misericórdia” (com um tubo pela boca) de forma repetida quando a visitava – e visitei-a todos os dias que ali esteve e, alguns, mais de uma vez por dia – fazia-me, inexoravelmente, sair a chorar quase compulsivamente do hospital.

Sou, porém, um privilegiado porque conheço médicos e enfermeiros, porque fui professor de médicos e enfermeiros, porque conheço pessoas que conhecem médicos e enfermeiros. Não me queixo, no hospital onde a minha mãe partiu, do que estes profissionais fizeram para me confortar, para me darem acesso, para me providenciarem informação no longo período em cuidados intensivos e em SO. Na neurologia idem. Relembro-me muitas vezes da dor, mas também já consigo, a pouco e pouco, ver coisas positivas. É claro que tento puxar por elas e para que me invadam e procuro sempre evitar todo e qualquer quadro negativo, toda a inacessibilidade não fossem os conhecimentos que tenho, toda a antipatia não fossem as minhas lágrimas.

Devo dizer que não “me tinha apercebido” das práticas dos auxiliares de ação médica. Tendo-me chegado ao conhecimento a sua situação através de um voice apenas procuro, com este texto, ajudá-los no que me parece elementar. Porquê? Porque tenho presente no meu coração quem fisicamente, no local, me abriu a porta, quem passou a recolher o lixo do quarto, quem limpava o chão, quem vinha à cama puxar os lençóis para cima, quem arejava o quarto, quem pegava nas fraldas sujas e as levava, quem aliviava os braços da minha mãe da prisão à cama, negros de tanto puxar. Eram profissionais sem rosto, sem resposta, sem protagonismo. Eram profissionais que abanavam a cabeça perante uma pergunta, como não podendo responder, mas eram os que mais via. Via-os sempre. E eram aqueles que sorriam para mim. Sorriam com ar doce e com um sorriso vindo da alma.

Fui procurar mais sobre estes profissionais quando esbarrei com o texto e voice do Luís Osório com o título “Os auxiliares de ação médica não são lixo”. Registei e fiquei a pensar no assunto.

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Encontrei informação dispersa, mas consegui chegar a um número arredondado de 150.000 profissionais (setor público, privado e social) em Portugal. 150.000 anónimos que trabalham na linha da frente, sem reconhecimento, sem carreira, muitos com idades avançadas e em horários certamente desumanos porquanto, a eles, a qualquer hora que fosse ao hospital, via-os sempre.

Encontrei na internet, e cito em frase de Marta Temido, de 2018, que “temos menos auxiliares de ação médica e que não temos sequer uma carreira para esses auxiliares de ação médica”.

Encontrei cursos profissionais que se fazem para estas pessoas, de níveis 4 e 5, com bastantes horas teóricas e prática em ambiente hospitalar (estágio). O que me espanta, porque, assim sendo, deveriam ser alvo de uma profissão reconhecida e estruturada.

Encontrei muitas outras coisas, mas hoje, apenas me queria deter numa. Simples, humana, que me toca o coração. Estes anónimos que passam horas com doentes e na linha da frente não têm carreira.

Porque a sua ajuda, os seus atos, a sua presença, o seu conforto, a sua boa vontade não é sequer uma carreira. Andam por aí, ao abandono, escorraçados pelos hospitais, públicos e privados, tantas vezes ignorados pelo sector social. Mas são gente, são pessoas, têm rosto, têm sorriso, têm uma mão e um abanar de cabeça e uma empatia por nós e por todos quantos sofrem por este Portugal inteiro.

Reclamo a quem olha por nós e nos governa que os oiça, os enquadre e decida. São gente importante, apesar de ser considerada menor. São gente digna e sacrificada, apesar de serem tratados como o lixo da saúde. Vamos acabar com isto.

Dêem-lhes a dignidade de uma profissão. Respeitem-nos. Enquadrem-nos. Façam por eles o que gostariam que fizessem por cada um de vós numa situação limite. Eles pertencem-nos. Os nossos doentes pertencem-lhes também e em primeiríssima mão. Eles merecem muito mais do que a inércia de anos e anos sem nunca ninguém nada fazer. Atuem, caramba. Porque eles são homens e mulheres como nós.

Devolvam-lhes em sorriso o sorriso com que me saudavam quando ia visitar a minha mãe. É tão simples. É tão fácil. E ninguém, não pode haver ninguém que tenha passado por um quadro hospitalar que não os tenha visto. E que não os guarde no coração e na memória como a primeiríssima linha da frente. A primeiríssima linha da frente, mas sem carreira.