Muito se tem falado de imigração. Para mim, a imigração “começou” mais ou menos quando tinha 14 anos e vi correr pelo mundo a foto, que tanto sofrimento e dor causou na Humanidade, do menino sírio, inanimado na areia. Depois, cresci e fui percebendo que a imigração era um tema muito mais complexo do que apenas sofrimento e revolta do lado de quem parte. Era também sofrimento e revolta do lado de quem recebe, do lado de quem se comove com a desgraça, mas no fim do dia, há sempre questões práticas e políticas a resolver.

As leis fazem com que tudo funcione, mas falar delas, apenas na busca de uma solução exequível, faz-nos esquecer facilmente do lado humano. Há uma certa estranheza em falar de imigrantes como se fossem um grupo de maçãs ou de batatas, mas talvez seja um problema transversal. Parece que hoje se fala assim de tudo, perdemos o sentido de raridade que há nos outros, falamos de toda a gente sem saber o que o Outro representa. É assim que falamos dos jovens, dos idosos, das mulheres, dos homens, dos transgéneros, dos imigrantes. Falamos de toda a gente com a simplicidade de quem monta uma banca de mercearia e quer despejar a fruta e os legumes nos caixotes em que couberem melhor. Mas não somos fruta e o mundo não é a nossa mercearia.

No debate de quarta-feira, Catarina Martins disse “A extrema-direita é o maior problema de segurança na União Europeia”. Já ninguém cai nesta conversa, e se a própria esquerda ainda cai, é mau sinal. Mas qual é, de facto, o maior problema de segurança na União Europeia?

Noticiado pelo Expresso na semana passada, o novo governo neerlandês está a traçar um plano rigoroso para diminuir a atratividade, e cito “As pessoas em África e no Médio Oriente começarão a pensar que poderiam estar em melhor situação noutros lugares”.

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Não deixo de notar a falta de semelhanças do mundo em que vivemos com o talvez idealista, mas importantíssimo, imperativo da maximização altruísta do prazer de Stuart Mill. Não descarto a vitalidade de manter vivos os utópicos, porque, mesmo que não possam ser aplicados a 100%, os ideias de Stuart Mill servem para nos mostrar, talvez, o tipo de mundo para o qual devíamos ter o objectivo de caminhar. O Utilitarismo tem como premissa realizar a felicidade do maior número de pessoas possível. Em princípio, ninguém revogaria esta ideia num mundo ideal, mas o problema é que estamos longe desse mundo ideal. Em Portugal, por exemplo, o número de situações precárias faz com que seja impossível desejar a felicidade do outro sem ter a sua assegurada. Aí vive o problema do Utilitarismo, desejar a felicidade do outro só é possível quando não corremos o risco da ameaça de o outro se sentir mais feliz do que nós. Alguns podem dizer que não somos evoluídos a esse ponto, eu digo antes que somos humanos.

Sempre que peço comida através de alguma aplicação, (quase) nunca me aparece um português. Mesmo sem fazer contas, posso dizer que 95% dos trabalhadores que me apareceram, tentavam, com esforço e entusiasmo, dizer “Boa noite, senhora; obrigado senhora”. Sempre que utilizo alguma aplicação para me levar a algum lado, a história repete-se, e já se repetiu de formas que me deixaram com um calor no coração. Há quem queira saber mais sobre o nosso país, há quem peça desculpa, quase embaraçado, por não conhecer bem os caminhos. Há quem goste que lhe façamos uma visita guiada ao longo do caminho. E talvez me digam “isso é só porque querem gorjeta”. Eu não sei se é por isso, e sinceramente nem me importa, que atire a primeira pedra quem não acredita que todos nós somos instrumentais. Claro que já me apareceram pessoas menos calorosas, mas eu simplesmente não escolhi generalizar. Também temos cá portugueses que não gostam do nosso país, mas eu não escolho generalizar a todos os portugueses, então, porque o faria com os imigrantes?

Eu não conheço a agonia de não saber quando vou voltar ao meu país, não conheço a agonia de contar o dinheiro para saber quando posso visitar a família que lá deixei, mas já conheci quem a conheça. Cito uma imigrante do nosso país que me comoveu há bem pouco tempo “sinto uma estranheza, é como se não pertencesse a lado nenhum, sei que não pertenço aqui, mas também já não pertenço lá”. Eu não conheço este limbo de não pertencer a lado nenhum. Ouvir estas histórias resolve o problema da imigração? Eu sei que não resolve, mas talvez resolva o medo. Poderá ser então o medo o maior problema de segurança na União Europeia? O medo, essa emoção primária, impressa no mais profundo do nosso ser. Tempos houve em que nos ajudou a fugir de animais ferozes, hoje serve-nos para temer os seres humanos iguais a nós, para recear que engulam as nossas cidades, os nossos empregos.

O lado humano da imigração pode não ser prático e certamente não faz leis, mas muda a nossa convivência, muda a nossa forma de olhar para as coisas. As leis são feitas por políticos que, por sua vez, são escolhidos pelo povo. Acontece que o povo está cada vez mais cheio desse medo. Os políticos apenas fazem o seu trabalho, agarram nos medos das pessoas e utilizam-nos como bandeira.

Os recentes casos em Portugal e a proximidade das Eleições Europeias tem vindo a incendiar o amor/ódio pelos imigrantes. E volto a reforçar que é um problema transversal, vivemos numa época incendiada, os ativistas climáticos têm aqui uma boa metáfora. A temperatura do mundo sobe, mas a nossa também. Estamos todos profundamente zangados uns com os outros, a nossa cabeça está quente e, olhando para trás na História, a zanga só se tem resolvido com revoluções feias. Será que ainda vamos a tempo de travar a próxima?

Esta semana, senti que voltei a ter 14 anos. A foto, que tanto sofrimento e dor causou na Humanidade, da morte do menino sírio numa praia da Turquia foi disseminada até à exaustão, mas às vezes precisamos de momentos como este, de voltar todos a ter 14 anos e a ter um momento de silêncio. É tudo muito complexo, mas há momentos em que volta tudo a ser tão simples. Estejamos calados um segundo, e talvez seja possível vermos o medo nos olhos uns dos outros.