1 Em 1992, enquanto tenente-coronel do exército, Hugo Chávez liderou, no país com as maiores jazidas petrolíferas mundiais — a Venezuela — uma tentativa falhada de golpe de Estado. Como consequência, esteve preso dois anos, sendo amnistiado. Em 1998, foi eleito Presidente da Venezuela, contra os partidos tradicionais e com uma agenda de defesa dos mais desfavorecidos. Em 1999, na sequência de um referendo que promove e vence, é alterada a ordem constitucional. A Venezuela é redenominada República Bolivariana da Venezuela, o sistema parlamentar deixa de ser bicameral e passa a unicameral. Os poderes presidenciais e executivos são largamente ampliados em detrimento dos parlamentares. Na sequência da vigência da nova Constituição, e com a convocação de novas eleições, é reeleito, e o Parlamento aprova poderes reforçados para o Presidente: pode legislar por decreto. Ocorrem nacionalizações e a reforma agrária. Em 2002, há uma tentativa de golpe de Estado com o objetivo de substituir Chávez, provavelmente com apoio americano. Em 2004 ocorre um referendo, reconhecido internacionalmente como democrático, que garante a sua continuidade no poder. Vence as eleições presidenciais de 2007, ano em que determina o encerramento da mais antiga e popular emissora de televisão do país, que o contesta, substituindo-a por uma estação estatal controlada.

Ao mesmo tempo, em termos de distribuição de riqueza, Chávez promove políticas que reduzem a pobreza e melhoram o Índice de Desenvolvimento Humano da Venezuela.

Hugo Chávez morre em 2013, ano em que os preços do petróleo – que representa mais de 90% das exportações venezuelanas — sofrem uma queda forte (tendência que se torna sistémica nos anos seguintes). É substituído na presidência pelo vice-presidente, Nicolás Maduro, que, ainda nesse ano, é eleito Presidente. Em 2015, a oposição vence as eleições parlamentares, num quadro político, social e económico conturbado.

Para contornar a oposição, que o procura destituir, em 2017 Maduro convoca uma Assembleia Constituinte, retirando poderes ao parlamento eleito. Nas conturbadas eleições presidenciais de 2018 é declarado, pela Comissão Eleitoral, Presidente eleito. Mas partidos políticos da oposição e líderes oposicionistas foram impedidos de concorrer. Maduro não foi reconhecido como vencedor deste ato eleitoral nem pela Organização dos Estados Americanos nem pela União Europeia.

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No início de 2019, Maduro toma posse, legitimado pelo Supremo Tribunal de Justiça. E Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, é declarado, pela maioria dos parlamentares da Assembleia Nacional, Presidente em exercício, sendo reconhecido nesse estatuto por mais de 50 países, entre os quais Portugal. Em Julho do corrente ano, Nicolas Maduro convoca eleições para a Assembleia Nacional, para Dezembro próximo.

2 A Venezuela é, atualmente, o país com a maior taxa de inflação do mundo — 2358% ao ano. De acordo com a Amnistia Internacional, num relatório sobre o ano de 2019: “A Venezuela continua a passar por uma crise de direitos humanos sem precedentes. As execuções extrajudiciais, as detenções arbitrárias, o uso excessivo da força e as mortes ilegais pelas forças de segurança continuam como parte de uma política de repressão para silenciar os dissidentes. A crise política e institucional aprofundou-se nos primeiros meses do ano, resultando no aumento das tensões entre o Executivo de Nicolás Maduro e o Legislativo chefiado por Juan Guaidó. O crescente protesto social foi confrontado com uma ampla gama de violações de direitos humanos e uma intensificação da política de repressão por parte das autoridades. Os prisioneiros de consciência enfrentaram processos criminais injustos. A liberdade de reunião e expressão permaneceu sob constante ameaça. Os defensores dos direitos humanos foram estigmatizados e enfrentaram cada vez mais obstáculos para realizar seu trabalho. (…) A interferência na independência judicial continuou e o isolamento dos fóruns regionais de direitos humanos deixou as vítimas de violação dos direitos humanos com poucos caminhos para buscar justiça. As autoridades recusaram-se a reconhecer a verdadeira escala da emergência humanitária e da deterioração das condições de vida. A população enfrenta grave escassez de alimentos, medicamentos, suprimentos médicos, água e eletricidade. No final de 2019, o total de pessoas que fugiram do país em busca de proteção internacional chegou a 4,8 milhões”.

De facto, a estes 4,8 milhões de refugiados, segundo as Nações Unidas, juntam-se 650 mil venezuelanos à procura de asilo político e 2 milhões vivendo em outros países americanos sob “outras formas legais de estadia”.

Também segundo a Amnistia Internacional, em Fevereiro de 2019, “na cidade de Santa Elena, fronteira com a Venezuela e o Brasil, a Guarda Nacional Bolivariana usou de força excessiva contra os indígenas que se dirigiam à fronteira para receber ajuda humanitária. O OHCHR confirmou que sete pessoas morreram e 26 ficaram feridas por tiros de forças militares. Na falta de suprimentos médicos, os feridos foram encaminhados a um hospital brasileiro.”

3 Boaventura Sousa Santos, um grande admirador de Hugo Chávez e da “revolução bolivariana”, é diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Recentemente, escreveu um artigo no jornal Público intitulado “A hora da esquerda: agora ou só daqui a muito tempo”, sobre a atual situação política em Portugal. Neste artigo, defende a necessidade de acordo parlamentar entre PS, PCP e BE na aprovação do Orçamento de Estado de 2021, num momento que corresponderá a “um novo período de mudança estrutural” (os anteriores terão sido 1986-1996 e 2011-2015, “dominados por forças de direita”).

Voltando à Venezuela: num artigo de 2017, que se intitula “Em defesa da Venezuela”, diz Boaventura Sousa Santos: “Estou chocado com a parcialidade da comunicação social europeia, incluindo a portuguesa, sobre a crise da Venezuela”. Diz ainda: “A Venezuela vive um dos momentos mais críticos da sua história. Acompanho crítica e solidariamente a revolução bolivariana desde o início. As conquistas sociais das últimas duas décadas são indiscutíveis.”

Num artigo do início de 2019, intitulado a “Nova Guerra Fria e a Venezuela”, diz: “Não é difícil concluir que não está em causa a defesa da democracia venezuelana. O que está em causa é o petróleo da Venezuela”.

No fim de 2019, numa carta aberta ao Presidente da Colômbia diz, a propósito de intervenções do governo colombiano relativas a populações indígenas: “Não exagero, senhor Presidente, ao dizer que o que vemos na Colômbia é um etnocídio contra uma parte específica da população”.

4 O que pretendo retirar daqui são factos e conclusões: Boaventura Sousa Santos critica publicamente a atuação contra os índios na Colômbia, mas não se lhe ouve uma única palavra sobre o assassinato de índios praticado por forças governamentais na Venezuela. Critica a comunicação social europeia e não refere o controlo da comunicação na Venezuela. Evidencia os ganhos sociais e económicos da população mais desfavorecida da Venezuela entre 2000 e 2010 e ignora completamente a situação de fome que se vive desde 2012. Defende a existência de uma democracia na Venezuela para legitimar as decisões governamentais, mas omite a repressão policial, as detenções ilegais, o silenciamento dos opositores do regime. Defende a existência de uma nova Assembleia Constituinte na Venezuela, mas esquece a legitimidade de uma Assembleia Nacional democraticamente eleita. Reivindica que os EUA é que estão por trás da instabilidade na Venezuela e que procuram incentivar ações ilegais de tomada do poder, mas certamente sabe que Hugo Chávez tentou, em 1992, um golpe de Estado.

Esta duplicidade é pouco sustentável num académico e no debate público. Aliás, como acontece com alguns outros académicos portugueses, sob a capa universitária Boaventura Sousa Santos afirma com a autoridade da ciência aquilo que é demagogia. Mostra-nos o mundo com óculos monofocais. E vem agora, na qualidade de inspirador intelectual da Esquerda, apelar à sua união em Portugal. Para, diz, promover a centralidade do Estado, num período pandémico, de transição energética, dos modelos de mobilidade, na política alimentar.

Conhecemos o modelo venezuelano da “democracia bolivariana” que tanto defende: um país estatizado, dependente das exportações do petróleo, minado pela fome e do qual quase um terço da população fugiu nos últimos seis anos, num êxodo sem precedentes.

Já conhecemos o filme. Mas há quem insista na sua reiteração, numa negação insustentável da realidade.

Mas, mais que o Plano Costa Silva — criticável mas pormenorizado — é o Plano Boaventura — que se resume a uma frase — que nos vai salvar: dêem ao Estado todo o poder.

É, como ele diz, “a hora da Esquerda”. Deixem o Estado controlar a totalidade dos sistemas políticos, económicos e sociais. E deixem as Esquerdas cuidar do Estado. E tudo se há-de resolver.

Quem não acreditar nisto é, evidentemente, um reacionário. Aqui ou na Venezuela.

Temos de mudar de óculos.