Não sei se ele nasceu numa manhã de nevoeiro, mas, bem vistas as coisas, na terra onde foi, é bem possível. Não foi em Sintra, como alguns prediziam, foi na Madeira – que, afinal, era território nacional bem mais fácil de chegar para quem vinha de Marrocos. Não, Cristiano Ronaldo não é Dom Sebastião; é mais alto, mais bonito, mais ponderado, provavelmente mais inteligente e, acima de tudo, é um vencedor; mas é a resposta de um tempo – o presente – ao sebastianismo. Sim, caros amigos: de uma maneira ou de outra, aqui estamos, 440 anos depois, sentados à espera de um salvador.

Em 1578, Dom Sebastião desapareceu numa nuvem de pó, carregando sobre os exércitos rivais, a espada erguida ainda brilhando até ao último instante, nas areias do deserto de Marrocos. Foi esta a imagem exacta, garante-me a imaginação. Com ele, caíram milhares de soldados portugueses, mortos, e, dois anos depois, a soberania portuguesa, perdida para Espanha, entre outros factores pelo vazio deixado no trono e pela penúria dos cofres nacionais, uma vez pagos ao sultão os resgastes de todos os (milhares de) prisioneiros.

Há quem diga que Portugal acabou aí (este vosso servo, por exemplo); o que veio depois foi uma sequela que reconhecemos até hoje: o país saudosista, frequentemente descrente e eternamente depenado em matéria de finanças. Acima de tudo, do desporto à política, ficou essa doença do sebastianismo: a espera em vez da acção, a crença em terceiros em vez de em nós próprios, uma estranha noção salvífica de como funcione ou não o mundo, irracional, apaixonada e apaixonante, gloriosa nos dias épicos, deprimente e paralisante nos maus.

O resultado, para os Dons Sebastiões de ocasião, é dúplice: por um lado, são prontamente elevados como deuses aos altares; por outro, atirados ao chão assim que cometem a imprudência de se revelarem humanos. E Ronaldo, que, de humano até parece ter bem pouco, é mais do que a simples prova disso; é a arma fumegante. Marca e é “o maior do mundo”; não marca e “tem a mania”, “está velho”, “só joga no Real Madrid”, “é que nem o compares ao Messi”, para já não falar de considerações sobre o teor da sua vida íntima (curiosamente ou não, o mesmo sucedia já com o Dom Sebastião original).

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Hoje, Portugal reencontrava Marrocos, não nas areias do deserto, mas ao calor do Verão da distante Rússia. Em causa, diria a lógica que estava apenas o apuramento para a fase a eliminar do Mundial de Futebol, mas sabemos bem que, para um povo emocional como nós, está sempre tudo em jogo: o amor-próprio, o orgulho nacional, o rendimento para o resto da tarde de trabalho, o velho ajuste de contas com Alcácer-Quibir e outro trauma mais recente (e ainda assim…), relativo à então adjectivada de “humilhante” eliminação no Mundial do México ’86.

No confronto, não foi, desta vez, Dom Sebastião que se perdeu; foi o nosso meio-campo. Ronaldo marcou cedo, com a cabeça brilhando ao sol entre os centrais, qual espada real entre a hoste inimiga – depois, seguiu-se o sequestro, ou o nevoeiro, qualquer coisa que não deixou ver mais nada. Marrocos, vestida com as cores que outrora foram também as nossas, parecia o verdadeiro Portugal: o que jogava, lutava, recuperava a bola, pensava, corria, rematava, tentava, tentava, tentava… e não conseguia.

No fim, onde antes Eusébio chorava, onde antes o próprio Ronaldo chorava, era vê-lo agora rir, das suas próprias simulações para falta e penalty. Marrocos recebia a sentença e nós ficávamos com o 1-0 que nos permitia continuar na corrida e, quem sabe, voltar ao trabalho, que isto ainda nem são bem três.

Donde, no fim de contas, talvez estejamos enganados: já não somos exactamente a mesma sombra de país que ficou depois de Alcácer-Quibir. Nos últimos anos, e já aqui em tempos falámos disso, fomo-nos tornando outra coisa. O mundo que nos deu os Cédric Soares e os Raphael Guerreiro e os Adrien Silva também nos deu outra atitude, com menos coração e mais cabeça, menos sofrimento e mais calculismo, menos poesia e mais pragmatismo. Preferimos a troca. Continuamos a suspirar por Dom-Sebastiões e não sabemos onde ir sem eles, mas, tendo-os, já não nos achamos eternamente condenados a perder por pouco.

Já não somos tão bonitos quando caímos, quando desaparecemos como heróis trágicos entre o pó. Aprendemos a ganhar, com glória ou sem.

É só futebol, dirá; não é uma coisa séria. Mas implica coisas sérias, a montante e a jusante. Que, em pano de fundo, esteja em causa um ombro a ombro com Espanha, é só o requinte poético final.