As primeiras notícias indicavam que Noa Pothoken, uma jovem de dezassete anos holandesa que sofria de stress pós-traumático e de grave depressão, tinha sido eutanasiada com cobertura legal. Parecia, pois, que estávamos perante mais um exemplo dos malefícios da lei holandesa, uma clara demonstração de onde pode chegar a “rampa deslizante” a que essa lei dá origem.

Veio a verificar-se, depois, que o pedido de eutanásia de Noa havia sido recusado por não estarem reunidos os requisitos legais. Poderia, assim, dizer-se que, como fazem habitualmente os seus partidários, o quadro legal holandês serve para limitar o recurso à eutanásia a situações excepcionais, em que não existem alternativas terapêuticas, como o demonstraria a recusa de eutanásia neste caso, em que existiam tais alternativas.

No entanto, parece-me que o clima cultural que a lei da eutanásia holandesa gera (porque a lei tem sempre ínsita uma mensagem cultural) ajuda a explicar o trágico desfecho da vida desta jovem.

Também este trágico desfecho reflete a “rampa deslizante”, o descalabro a que se poderá chegar (até para além da intenção dos seus promotores), sem possibilidade de controlo ou retorno, quando se derrubam as barreiras que qualquer lei que autorize a eutanásia derruba, por muitos requisitos limitadores que esta exija.

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De acordo com os relatos que agora vieram a público, Noa Pothoken, desesperada, quis pôr termo à sua vida recusando a alimentação e a hidratação. Os pais e os médicos não a impediram de o fazer e a intervenção destes últimos terá sido de âmbito meramente paliativo.

Não se duvida da boa fé de uns e outros, nem dos seus esforços para tentar dissuadir a jovem. Mas deveriam ter ido mais longe e fazer tudo (até coercivamente) para impedir este suicídio. Como uma pessoa que impede um suicida de disparar uma arma sobre si próprio, ou de se atirar de uma ponte.

Omissões como esta não integrarão o crime de auxílio ao suicídio previsto no artigo 135.º do Código Penal português, o qual parece supor um comportamento ativo. Mas serão (pelo menos) moralmente questionáveis. E a conduta de quem impede a consumação de um suicídio torna justificada, nos termos do artigo 154,º, n.º 3, b), do mesmo Código, uma eventual coação.

Em que é que a mentalidade eutanásica que influencia, a partir da lei, a sociedade holandesa contribuiu para o trágico desfecho da vida de Noa?

Por um lado, essa mentalidade faz da autodeterminação individual um dogma absoluto e ilimitado, a ponto de levar a respeitar, em nome desse princípio, a decisão suicida de Noa, que só a patologia pode explicar. De acordo com a psiquiatra Paula de Rose (in www.agensir.it, 5/6/2019), no stress pós-traumático, as funções cerebrais não conseguem integrar-se bem, porque algumas estão desativadas e na falta da plena funcionalidade cerebral não pode haver plena liberdade. Não pode, pois, ser encarada a decisão suicida de Noa, tal como a de muitos outros suicidas, como se fosse verdadeiramente consciente e livre.

Mas é certo que são com alguma frequência autorizadas, na Holanda e noutros países, eutanásias de pessoas que sofrem de depressão ou de outras doenças psíquicas. A depressão é frequente em doentes terminais em sofrimento. Pode ser mais chocante a eutanásia, ou o auxílio ao suicídio, de um jovem que sofre de depressão, mas não deixa de ser igualmente reprovável (além do mais porque não estamos perante uma decisão autenticamente consciente e livre) a eutanásia ou o auxílio ao suicídio de um doente terminal deprimido, como sucede com alguma frequência. Todas essas situações são manifestações da “rampa deslizante” geradas pelas leis da eutanásia holandesa e de outros países.

Por outro lado, a mentalidade eutanásica vê na morte provocada uma resposta e uma saída para o sofrimento. A eutanásia e o auxílio ao suicídio (por ação ou omissão) não põem termo ao sofrimento, põe termo à vida da pessoa que sofre. Representam a capitulação, a desistência, o “cruzar de braços”, diante do combate ao sofrimento e do esforço para o eliminar, aliviar ou debelar (sendo que dar-lhe um sentido também faz parte desse esforço). Um sofrimento atroz como o de Noa Pothoken, e de muitos jovens e adultos que sofrem de depressão, pode e deve ser combatido. A morte provocada não é, não pode ser, a resposta para esse sofrimento (não acaba com ele, acabe com a vida de quem sofre). Mas essa é a resposta que dão a eutanásia e o auxílio ao suicídio. Admitir que essa é uma resposta válida é quebrar uma barreira. E, depois de quebrada essa barreira, é impossível voltar atrás e conter as consequências que daí derivam (desde logo, no plano cultural e da mentalidade comum) e que ultrapassam a intenção de quem queira limitar a eutanásia a situações excecionais.

Entre essas consequências está a da passividade perante um suicídio como o de Noa. Uma passividade que só se compreende porque se parte do princípio de que esse suicídio era uma resposta e uma saída para o sofrimento dessa jovem. Quando se parte desse princípio, é mais fácil ceder à tentação de desistir de combater esse sofrimento.

Afirmou, a propósito deste caso, Assuntina Morresi, editorialista do jornal italiano Avvenire:

«Quando à escolha de morrer se dá o mesmo valor do que à escolha de viver, quando a morte é vista como possível remédio para uma existência atormentada, tudo se transforma nos critérios de juízo e nas referências da nossa vida. Se a morte pode aliviar o sofrimento, porquê pôr-lhe limites? Deve ser dada a todos, também a crianças e a pessoas deprimidas. Entra-se num novo mundo, em que é melhor morrer do que viver».

Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz