O nome completo de Zandinga era Lesagi Gymmes Zandinga. Mas o seu nome verdadeiro, ao que parece, seria João Almeida Emanuel. Dependendo das inclinações linguísticas ou espirituais de quem o ouvia nos anos 80 em Portugal, Zandinga era um místico, ou um vidente, ou um tarólogo, ou um bruxo, ou um impostor. Independentemente das qualificações, era, pelo menos, seguramente, alguém que gostava de se apresentar como tendo a capacidade de prever o futuro. Com insólita regularidade, costumava aparecer na RTP no final de cada ano para antecipar mediunicamente o que iria acontecer nos meses seguintes. Como seria de esperar, falhou muito e falhou de forma espetacular. Mas isso não o impedia de continuar a afirmar a sua condição de iluminado. Segundo se diz, fez a dada altura a previsão de que o Benfica seria campeão e, quando isso não aconteceu, justificou-se afirmando que o clube tinha sido campeão, sim, mas em juniores.

A lição ficou para quem a quis aprender: alguém que pretenda ser Zandinga, só precisa de ter o cuidado de manter todas as hipóteses em aberto quando faz previsões. Eram precisamente essas cautelas que Pedro Adão e Silva tinha nos seus bons velhos tempos de comentador político multiplataforma.

Numa entrevista recente à Visão, o agora ministro da Cultura dedicou-se a prosseguir aquela que tem sido a sua principal atividade nas últimas semanas: o autoelogio. Há uma frase especialmente reveladora porque, à medida que avançamos na leitura das palavras, vamos imaginando o umbigo de Pedro Adão e Silva a crescer descontroladamente, até não caber nos seus limites corpóreos, primeiro, e, depois, no amplo salão em que decorreu a entrevista. Aqui está ela: “Eu recuo ao meu tempo de comentador. Quando havia uma espécie de coisa apocalíptica e acelerada de que as últimas eleições estavam a ser muito disputadas e de que o PSD ia ganhar, eu lembro-me de, no fim de semana anterior, ter escrito no Expresso e dito na rádio e nas televisões que achava que o PS estava mais próximo da maioria absoluta do que o PSD de vencer as eleições. E isto não era um desejo, era uma análise que fazia com base nos dados. Na altura, fui visto quase como um marciano.”

Tanto quanto me recordo, na altura o comentador Pedro Adão e Silva não foi visto “quase como um marciano” — mas foi seguramente visto, pelos mais atentos, como alguém a oscilar entre a confusão e a indecisão. É que, de facto, uma semana antes das eleições, o comentador escreveu na sua coluna do Expresso que, “neste momento, o PS está bem mais próximo da maioria absoluta do que o PSD de vencer as eleições”. Mas, nesse mesmíssimo artigo, uns parágrafos mais à frente, decretou também isto: “É pouco provável que das legislativas resulte uma maioria absoluta”. Defendendo tudo e o seu contrário, é sempre possível, como Zandinga, adivinhar que o PS seria campeão, nem que fosse de juniores.

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Mas as opiniões pré-eleitorais de Pedro Adão e Silva em relação à eventual maioria absoluta do PS são ainda mais complexas e fascinantes. É que, depois deste artigo que o agora ministro cita na entrevista à Visão, e antes das eleições, foi escrito outro, chamado “Os gatos que não riem”. Foi publicado dois dias antes das legislativas e, aí, o nosso Zandinga do comentário político escreveu isto: “De acordo com todas as sondagens, e independentemente de saber se será PS ou PSD o mais votado no domingo, há um resultado que é inequívoco: o voto somado na esquerda recuará muito face a 2019, ao ponto de podermos ter na segunda-feira uma maioria de direita, alcandorada num partido xenófobo e que escapa ao arco constitucional”. Neste seu último texto, a escassas 48 horas do ato eleitoral, o ex-comentador já não se lembra de escrever as palavras “maioria absoluta”. Pior: não sabe se o vencedor das legislativas será o PS ou o PSD. Ainda pior: decreta ser inequívoco que “o voto somado na esquerda recuará muito face a 2019” (como se veria, aumentou). Pior ainda: antecipa a possibilidade real de termos como resultado das eleições “uma maioria de direita” que estaria “alcandorada” no Chega.

Perante isto, não se percebe porque é que, durante a entrevista que deu à Visão, o ministro da Cultura se lembrou de forma tão vívida do texto que publicou uma semana antes das eleições e se esqueceu de forma tão conveniente daquele que escreveu dois dias antes das legislativas. Esse esquecimento provoca ainda maior perplexidade porque é este último artigo, publicado a 22 de janeiro de 2022, que mostra maior coerência com o seu pensamento nos meses anteriores, como podemos ver pelas frases seguintes (os itálicos são meus, para tornar mais claro o que já é evidente).

A 23 de dezembro de 2021, Pedro Adão e Silva antecipou: “Com o fim abrupto da ‘geringonça’, estas eleições seriam necessariamente marcadas por uma pergunta: na mais que provável ausência de maioria de um só partido, qual seria a estratégia de coligações dos partidos que de facto apresentam candidatos a primeiro-ministro?”.

A 6 de novembro de 2021, elucubrou: “Há um resultado eleitoral que resolve o berbicacho: uma maioria absoluta. Mas como a fragmentação parece ter vindo para ficar, não se antecipa que um Parlamento que, previsivelmente, terá nove partidos possa gerar uma maioria monocolor, mesmo que o país pudesse vir a beneficiar disso”.

E a 23 de outubro de 2021 sentenciou: “Como não se vislumbra que no quadro atual, de crescente fragmentação eleitoral, um partido seja capaz de alcançar uma maioria absoluta, tornar-se-ia claro que a esquerda tinha esgotado a capacidade para oferecer uma solução política de convergência.” E nesta data ainda fez outra arguta previsão: segundo ele, a desarticulação da geringonça provocaria um êxodo para a direita. Aqui está: “Uma crise política, agora, significaria o fim da geringonça e levaria os eleitores a voltarem-se para a direita, na esperança de que daí saísse uma solução politicamente viável.”

Como se vê, o “marciano” Pedro Adão e Silva é, afinal, muito terreno. Não previu uma maioria absoluta em outubro, nem em novembro, nem em dezembro — nem, na verdade, em janeiro. Simplesmente, houve um artigo a uma semana das eleições em que admitiu esse resultado e o seu oposto. E, a poucas horas do voto, fez uma “apocalíptica e acelerada” previsão: uma queda da esquerda (que não aconteceu) e uma ascensão da direita (que também não aconteceu). Mas, na sua cintilante cabeça, Pedro Adão e Silva é como o Benfica de Zandinga: mesmo quando falha, é sempre um campeão.