Inicio esta minha colaboração com o Observador com uma questão pertinente para estes tempos pós-modernos que vivemos: que educação garante a formação integral da pessoa?

Durante séculos, isto não foi um problema pois olhava-se para a pessoa como um todo. Ao aprendiz transmitia-se as artes que lhe permitiam não só um dia exercer a sua profissão como também formar um homem livre (daí o uso do termo “artes liberais”, em oposição às “artes mecânicas”, destinadas aos servos e escravos). Do homem livre esperava-se competência na profissão, baseada no conhecimento e experiência adquiridos, mas também capacidade para pensar de forma crítica e autónoma, para melhor poder intervir na polis.

Não se perdeu totalmente esta noção de ensino, mas raras são as instituições onde as artes liberais ainda integram o currículo básico, isto é, transversal a todos os cursos. Nos EUA, a Universidade de Dallas é uma dessas excepções. Fazendo jus à “ideia de universidade” preconizada por John Henry Newman (1801-1890), esta instituição académica oferece nos primeiros dois anos de qualquer um dos seus cursos um plano de estudos que promove a formação integral do aluno e o prepara solidamente para os anos seguintes. O plano inclui disciplinas como arte, ciências, economia, filosofia, história, literatura, matemática, política e teologia. Se alguém me pedisse uma sugestão para onde mandar o filho, já saberia o que responder. Aquele grupo de disciplinas corresponde de certo modo à evolução natural das sete artes liberais ensinadas durante a época medieval (gramática, retórica, lógica, música, aritmética, geometria e astronomia), iconicamente retratadas numa obra do século XII da autoria de Herrad of Landsberg, “O Jardim das Delícias” (Hortus deliciarum). Na imagem, que tem por título “A filosofia e as sete artes liberais” (Philosophia et septem artes liberales), a filosofia surge ao centro por se considerar a rainha de todas as artes.

Para que não restem dúvidas sobre a importância das artes liberais, nas quais, como se vê, estão incluídas as humanidades, que tal invocar um dos cientistas mais brilhantes que o século XX conheceu? Numa entrevista para o New York Times intitulada “Education for Independent Thought”, o insuspeito Albert Einstein (1879-1955) afirmou que “não basta ensinar uma especialidade a um homem” e que sem uma “compreensão dos valores” e um “sentido do belo e do bem moral”, o estudante, mesmo com todo o conhecimento especializado, “assemelhar-se-á mais a um cão bem treinado do que a uma pessoa harmoniosamente desenvolvida.” Que recomendava então o inventor da célebre fórmula E=mc²? Nada mais nada menos do que incluir as humanidades na formação académica. A desilusão de Einstein com a ciência, em parte provocada pelo uso da sua teoria da relatividade na produção da bomba atómica, foi de tal forma que pouco tempo antes de morrer confidenciou a um amigo, Max Born, que se pudesse recomeçar a sua vida, não escolheria uma profissão “que tenha a ver com a procura de conhecimento.”

O ensino pós-moderno é caracterizado pela compartimentalização dos saberes e hiperespecialização das competências. Quem estuda biologia ou medicina não estuda história ou literatura e quem sabe rodar o parafuso para a direita não o sabe rodar para a esquerda (e vice-versa). O exagero aqui serve para ilustrar quão mecanizados, tecnológicos e especializados nos tornámos. Em si, isto é bom, mas acentuou-se de tal modo o conhecimento técnico e científico que a formação humanística, que forma o tal “homem livre”, passou para segundo plano. Acontece que esta formação dá-nos algo único: cultura e sabedoria. A primeira enriquece as nossas vidas e enquadra-nos numa narrativa histórica maior; a segunda ensina-nos a amar a Verdade e a procurar a justiça e o bem comum. Precisamos da cultura e da sabedoria para não nos tornarmos escravos do nosso próprio progresso e acharmos que a nossa época pós-moderna corresponde ao cume da civilização. Pobre de quem assim pensa.

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Na medida em que promovem o pensamento crítico e autónomo e integram as várias áreas do saber, as artes liberais podem também constituir um antídoto contra o ensino ideológico. Um exemplo deste foi quando se tentou impor o “intelligent design”, uma variante pseudo-científica do criacionismo, nas escolas públicas americanas. Para o catolicismo, não há qualquer conflito entre a existência de um Deus criador e a evolução gradual dos organismos a partir de mecanismos de seleção natural, mas para determinados ramos evangélicos e protestantes, a ideia de evolução contradiz o que está descrito nos primeiros capítulos do livro do Génesis. Quiseram assim que a sua interpretação literal dos chamados mitos das origens (criação do mundo em sete dias, Adão e Eva, Abel e Caim, etc.) fosse integrada no currículo público de modo a que evolucionismo e criacionismo fossem igualmente ensinados. Curiosamente, foram os argumentos de um católico, o biólogo Kenneth Miller, que levaram o tribunal a rejeitar a integração do criacionismo no currículo público.

Em Portugal também temos exemplos de doutrinação ideológica. Veja-se o caso do Despacho n.º 7247/2019, que implementa no ensino público em Portugal as medidas promotoras do “exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas”. Na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º, podemos ler que as escolas devem emitir orientações no sentido de “promover a construção de ambientes que na realização de atividades diferenciadas por sexo permitam que se tome em consideração o género autoatribuído, garantindo que as crianças e jovens possam optar por aquelas com que sentem maior identificação.”

Ninguém se lembrou que um ensino baseado no “género autoatribuído” e no que as crianças “sentem” é receita certa para a discriminação? Com legislação desta natureza, se um rapaz sofrer de disforia de género e “sentir” que é uma rapariga, nada o impede de competir em desportos femininos. Ainda que com outros contornos, o caso da atleta transgénero Lia Thomas, que anda a bater recordes na natação depois de ter começado a competir em equipas femininas, é o caso mais recente nos EUA. Como é que o feminismo progressista, que combate militantemente as desigualdades entre os géneros, não anteviu isto é que é de espantar. Falta do tal pensamento crítico?

Seja qual for a opção, não se consegue fugir de um ideal e modelo de ensino. É por isso que não faz sentido falar-se em ensino neutro, como se a cada momento pudéssemos fazer tábua rasa de tudo o que nos rodeia e antecede. Assim, porque não recuperar, com o devido ajuste à era que vivemos, o que já passou o teste do tempo e voltar a olhar para o estudante como um todo, transmitindo-lhe o que de melhor se pensou, produziu e escreveu desde a antiguidade clássica até à idade contemporênea? Não é preciso inventar a roda, mas simplesmente valorizar e tirar partido do enorme património cultural, artístico, filosófico, literário e espiritual que o Ocidente possui.