1 Tantos equívocos, quantos enredos. Desgraçadamente, o Portugal da opinião publicada (o outro não sei e tenho pena de não saber) lembra um gigantesco Benfica-Sporting. De um lado, os inconsoláveis “acusadores” de Sócrates, que queriam mais sangue, do outro, os tão convictos defensores das decisões de Ivo Rosa, reduzindo, assim, com a leveza de uma valsa bem dançada, a questão do terrível estado da Justiça portuguesa a um combate quase escabroso. Como foi possível que o pilar essencial do Estado de Direito se tenha despenhado deste modo pelas suas próprias escadas abaixo, mesmo sendo certo que já as tinha começado a descer há muito?

Se há questão, por natureza, acima de qualquer outra, é a Justiça; se há gente que nos exigiria respeito automático, são os seus oficiantes; se há símbolo que por si só nos deveria transmitir confiança, são aquelas duas balanças. Deixou de acontecer uma coisa, e outra, e outra. Pobres de nós.

2 Em vez de Justiça confiante e confiável há um terreno pulverizado. Não é, porém, de hoje, o daninho adubo nem de agora as piores suspeitas. O que é de hoje é a gelada constatação, a olho nu e ouvido agudo, do mal a larvar assim: impune, corroendo a Justiça e corrompendo o seu próprio tecido onde esgrimem sem piedade nem responsabilidade os seus diversos protagonistas. Do mal, sim. Para muitos, talvez quase todos, o mal seria Sócrates ele próprio, mas não é nele em quem penso neste momento. (José Sócrates apenas deu azo e razão aos que há muito o acham um produto de uma mente desconjuntada e doentia e que melhor prova disso, que o alucinante show que ele produziu, realizou e interpretou à saída da sessão instrutória?)

Não, o que me interpela, aflige e envergonha é o factor Justiça: o seu estado de saúde, a noção quase física, concreta, real, da indiferença que provoca a sua doença, a paulatina eternização de um malsão estado de coisas.

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3 Só há dois juízes, dois (quem não sabe, que pasme!), de instrução criminal… E se não desse vontade de chorar a assombrosa normalidade com que o próprio universo judicial convive com tão modesto número de juízes disponíveis para tão pesada função, daria uma hilariante vontade de rir. Os dois chamam-se Carlos Alexandre e Ivo Rosa e, azar nosso e actividade a deles, odeiam-se entre si, “desconfiam-se” e torpedeiam-se. Depois, há uma lendária, embora, infelizmente, também carnivoramente real guerra civil entre o Ministério Público e Ivo Rosa e vice-versa. Guerra dura, crua e antiga. Não se consideram nas respectivas funções, descrêem nos respectivos métodos de trabalho, o desprezo e a acidez escorrem das páginas e dos écrans onde escrevem. Depois ainda, muitos dos advogados que costumam defender os ricos e poderosos, ou só uns, ou só outros, militam também –  e audivelmente – contra o Ministério Público, a quem todos os dias acusam de tudo, das deficientes instruções que fazem os seus procuradores às fugas de informação, passando pelos supostos favores que fazem aos seus eleitos na media.

Mas – dizem alguns desses causídicos – “preferem” ter pela frente Ivo Rosa, que consideram mais “urbano” e frequentando meios “sofisticados”, em detrimento de Alexandre, um “rústico das Beiras”, a quem, por isso, olham com mal disfarçado fastio.

E last but not least, há, como uma sombra negra, a terrível e temível burocracia, pairando inamovível sobre o céu deste infeliz terceiro poder. Tentacular monstro que se amplia na razão inversa da celeridade exigida ao normal funcionamento das coisas.

Se acham que exagero ao considerar isto – como considero – um universo explosivo, talvez concordem que ele é, pelo menos, pouco recomendável. Deixa-nos inquietos e descrentes. E com medo, claro: e se fosse connosco? (Mas foi connosco: José Sócrates geriu o país onde nasci, levando-o directo ao abismo; Ricardo Salgado fez sumir as legítimas “reservas financeiras” de milhares de portugueses, cuidadosamente postas de lado para “um  dia que”…  um dia que fosse preciso acudir a alguém, assegurar uma velhice digna, cuidar de uma doença, dar uma casa a um filho, albergar uns pais idosos. Cada um desses Portugueses que confiaram,  já se arrependeu, estou certa, de ter confiado e… pode dizer-se pior? Não pode.)

4 Ainda só vimos o primeiro acto desta novela, já requentada antes de tempo por ter passado tempo demais. E apesar de haver matérias já a andar –  não se sabe é se a passo, se a galope -, a caminho de um  julgamento, a segunda parte é mais incerta. E o desfecho também, apesar das certezas já entretanto disparadas por ambos os lados da guerra em curso. Mas não sabendo o fim, sabemos o essencial: está em falta na Justiça um bem de primeiríssima necessidade chamado confiança. Ser confiável seria, aliás, o único adjectivo permitido à Justiça, o único, justamente, que ela se deveria exigir a si mesma. Cega, surda e muda. Tudo o que não é. (Ainda há meses, a própria titular da pasta da Justiça não hesitou em fazer de conta que o resultado de um concurso para um cargo europeu não tinha sido ganho por quem foi, mas por quem ela queria que tivesse sido. E conseguiu: o falso vencedor lá abalou para Bruxelas, com o resultado que se sabe: a pública humilhação da real vencedora, face a uma plateia de Portugueses estupefactos. Justiça?)

Por isso falei de “mal” para além de José Sócrates e dos outros. O mal é, evidentemente, indesligável dos seus actores, mas dada a incredibilidade que rói o mundo judicial, consegue estar para além deles. O caso deixa mossa, dividiu o país e dividiu-o transversalmente. Não é todos os dias que um processo é atirado ao chão com “deficiências” tão estrondosas. Engana-se, por isso, quem olhar para o caso arrumando-o na gaveta da direita ou na prateleira da esquerda. Sim, vai deixar mossa e marca, terá consequências. O país a braços com a sua penúria, uma pandemia com vacinação, digamos, intermitente, uma classe política em acelerado downgrading e uma classe económica pobreta (e nem sequer alegreta…) dispensava bem um extra deste calibre.

5 António Costa nem fez bem, nem fez mal, fez igual. Já tínhamos visto, a receita é única desde o  início: é como se não fosse nada com ele nem com o PS, nem sequer com um parente afastado da família socialista. Como se não conhecessem Sócrates e, ainda menos, como se nunca tivessem com ele partilhado o poder, as ambições, as escolhas, as decisões.

Houve o que houve, mas não houve mea culpa, uma comunicação ao país, um pedido de desculpa, um sinal de arrependimento, surpresa, espanto, aflição. Nem um som, em tantos anos.

Outra vergonha.

6 A Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, que compreende “alguma perplexidade e o desconforto” face a tudo isto, considera que pode ser este “o momento para reflectir e aprofundar certas temas que estão em cima da mesa”.

Daqui e com todo o respeito, pergunto à Sra. Procuradora: pode mesmo?