Uma característica marcante do sistema científico nacional é a existência de um grande número de investigadores precários. A definição do que é um precário depende, em grande medida, de quem participa no debate. Para alguns, que podemos chamar, à falta de melhor, maximalistas, deveriam existir apenas contratos definitivos. Para outros, como eu, que podemos chamar de minimalistas, ter um contrato a prazo não tem qualquer problema, desde que haja um caminho bem definido sobre quais as provas a prestar e as avaliações a superar para conseguir um contrato definitivo.

Apesar de ser uma característica marcante de Portugal, a precaridade na ciência não é um exclusivo do nosso país, ou de países onde historicamente se investe pouco em ciência como Espanha ou Itália. Pelo contrário. Em países ricos e que devotam muitos recursos à ciência, como a Alemanha, o caminho para um lugar definitivo é árduo, dando origem, aliás, a um movimento chamado #IchBinHanna, através do qual os investigadores partilham histórias pessoais do caminho das pedras até ao tenure.

Vem este introito a propósito dos movimentos tectónicos que estão a ocorrer na ciência em Portugal e que, a breve trecho, creio, ganharão cada vez maior visibilidade mediática à medida que o problema se agudizar. O problema de fundo permanece: o investimento em ciência está congelado desde os governos de José Sócrates, em 2009, o que, na prática, significa que, com a inflação, houve já uma queda real do dinheiro atribuído à ciência no Orçamento do Estado. Se, apesar de tudo, durante os anos de chumbo da troika, poder-se-ia arranjar uma justificação social para manter o investimento em ciência congelado, especialmente num contexto em que estavam, literalmente, a ser cortados os meios básicos de subsistência de muitos portugueses, é espantoso como, a partir de 2015, não houve qualquer mudança. O virar de página, as vacas voadoras e o fim da austeridade não chegaram à ciência. Para que deveria o governo incomodar-se em gastar os parcos recursos a satisfazer uma clientela que, no fundamental, está já, em muitos casos, literalmente no bolso do Partido Socialista?

O congelamento do financiamento à ciência poderia, apesar de tudo, ser o mal menor do governo de António Costa. Na verdade, o principal erro que o governo cometeu na ciência foi o chamado PREVPAP. Para os leigos, explico muito rapidamente. Ao contrário das boas práticas internacionais sobre recrutamento universitário, o programa do PREVPAP permitiu a um número alargado de investigadores obter um lugar permanente nas universidades através da secretaria. Em vez de se submeterem a um concurso de recrutamento internacional aberto, com todos os problemas que estes, apesar de tudo, têm, estes investigadores, pelo simples facto de ocuparem lugares precários há um número suficiente de anos, ganharam o acesso a lugares permanentes. Este processo teve duas perversidades. Em primeiro lugar, ignorou completamente a produção científica dos investigadores integrados no quadro, na medida em que o tempo passado em contratos precários era o único critério a ter em conta. Em segundo lugar, criou enorme injustiças puramente arbitrárias baseadas no calendário. A título de ilustração, diga-se que foi estabelecida uma linha de corte na qual os investigadores com contrato precário até 31 de Dezembro eram abrangidos pelo PREVPAP e poderiam aceder a lugares definitivos. Ao mesmo tempo, investigadores que tiveram a desdita de assinar um contrato no mês imediatamente a seguir já não tiveram a possibilidade de aceder a mecanismos de integração em lugares definitivos. (Para clareza: nunca estive envolvido em quaisquer processos do PREVPAP).

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A questão do que fazer com os precários coloca-se agora novamente em força. Em 2017, o governo de Costa inventou um expediente através do qual prolongava artificialmente os contratos de centenas de investigadores, muitos dos quais eram francamente medíocres pelos padrões internacionais. Agora, em 2023, o problema voltou para ensombrar o governo. Esses contratos estão a acabar. Cerca de 2000 investigadores serão, simplesmente, despedidos ao longo dos próximos anos, à medida que os seus contratos terminam. As universidades estão em polvorosa, embora o descontentamento não tenha obtido grande eco público, ao contrário do que aconteceria se estivéssemos perante um governo de direita, pejado de neoliberais que querem fazer mal aos intelectuais.

O objectivo destes investigadores é simples. À semelhança do PREVAP, pretendem ser automaticamente, e sem concurso, integrados nos quadros das universidades. As consequências seriam trágicas. Em primeiro lugar, em vez de assistirmos à renovação dos quadros universitários, a integração deste contingente mataria o mercado de contratações na universidade por duas décadas. A integração destes precários impossibilitaria – até por razões financeiras — a contratação de novos investigadores ao longo dos próximos anos por um motivo evidente: não haveria dinheiro. Todos os recursos existentes seriam absorvidos pelo pagamento dos salários dos precários. Em segundo lugar, muitos destes precários têm percursos académicos francamente medíocres, muitas vezes à sombra de redes clientelares as quais, eternamente, prometem frutos que tardam em chegar. Dito de outra forma, os precários que querem entrar pela secretaria simplesmente não são os melhores investigadores do nosso sistema científico.

Felizmente, os reitores estão concertados para não deixarem que isto aconteça. Apesar de tudo, é necessário impedir que um grupo de pessoas – a quem, é certo, muito foi prometido — tome de assalto as universidades, congelando-as por décadas e impedindo a entrada de sangue novo e melhor. É evidente que resta a pergunta: o que fazer com os precários? A solução é simples e exige vontade política. Se está realmente preocupado com a ciência, o governo de António Costa tem de aumentar o financiamento – que, recordo, está congelado desde 2009 – e dotar as universidades dos recursos financeiros para abrirem concursos internacionais para o recrutamento de pessoal. Os precários apresentar-se-iam a estes concursos, como quaisquer outros candidatos, e um júri, de preferência internacional para garantir o mínimo de lisura, escolheria os melhores. Quem ganhasse um concurso aberto e limpo, teria oportunidade de obter um contrato definitivo, quem não ganhasse teria de concorrer a outras coisas ou fazer-se à vida. Um investimento a sério na universidade, escolhendo os melhores e os mais capazes seria o único caminho sério. Se acham que isto é irrelevante e o sistema científico está no bom caminho, atentem na tabela na qual reproduzo os resultados dos concursos do European Research Council de 2022 (os últimos números disponíveis), o programa mais prestigiado de financiamento científico a nível Europeu. Na tabela, recolho o número de projetos que as universidades portuguesas conseguiram obter, bem como outros países europeus de dimensão semelhante bem como Espanha, nos três níveis de carreira (Starting, Consolidator e Advanced). Portugal encontra-se numa posição francamente confrangedora, especialmente nas ciências sociais, que mostra à sociedade que há um debate sério que tem de ser tido. Assim haja vontade política.

dr