vO artigo que escrevi no Observador sobre os investigadores precários (um grupo restrito destes, na verdade, pois o universo de investigadores é bem mais vasto) suscitou uma resposta de Simone Tulumello (ST), investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, meu ex-colega, por quem tenho consideração académica e pessoal. Para além de académico com carreira firmada internacionalmente, ST é um empenhado activista em matéria de ciência e de habitação. As posições de ST suscitam questões interessantes sobre a ciência em Portugal e algumas das escolhas que terão de ser feitas nos próximos anos, e que vale a pena debater.

Vamos à matéria onde estamos de acordo. Concordamos que é necessário um investimento sério em ciência que tire Portugal da cauda da Europa e que, finalmente, ofereça recursos aos investigadores e professores universitários para darem um passo em frente e elevarem o sistema científico nacional a outro patamar. Estamos também de acordo na necessidade de aumentar o financiamento de projectos científicos. Ao longo dos últimos anos, a percentagem de projectos aprovados desceu drasticamente, apesar de, de acordo com a propaganda, termos virado a página da austeridade graças aos governos Socialistas. De resto, existe uma frase do artigo de ST com a qual concordo inteiramente: em matéria de ciência, “investir dinheiro é a forma para atrair dinheiro”. Mas investir dinheiro implica opções, até porque, mesmo aumentando, esse financiamento não é ilimitado.

Temos, portanto, de investir o dinheiro de forma inteligente e eficaz, especialmente quando este é escasso. Como deve ser orientado um eventual aumento do financiamento disponível para a ciência em Portugal? Existe um conjunto de investimentos sobre os quais, creio, ST e eu estaremos certamente de acordo, nomeadamente, aumentar o financiamento de projectos ou aumentar as dotações das instituições para investimento estrutural. No entanto, estou em completo desacordo com ST quanto ao problema ao que se convencionou chamar de “investigadores precários”, isto é, como resolver o problema de todos aqueles que não estão nos quadros das universidades.

Para esclarecimento dos termos do debate, ao contrário do que ST afirma, “implicitamente, quem usa o argumento de Fernandes – defende[m] que a grande maioria dos cientistas continue a ser precária de forma indeterminada”: a minha posição não é esta. Não defendo, naturalmente, a perpetuação do estatuto dos precários. Não é natural que, num sistema científico, existam pessoas que, aos 45 ou 50 anos, depois de vários anos de carreira, não estejam integrados no quadro. Nos sistemas científicos consolidados e avançados, salvo raras excepções, quem passou pela carreira académica, aos 50 anos, deverá ter uma posição estabilizada ou, alternativamente, terá saído já da academia por processos canónicos de selecção. Os ditos processos ocorrem de maneira óbvia: há inúmeros investigadores a quem é negado o tenure porque simplesmente não têm qualidade ou, outros ainda, decidem sair da universidade de moto próprio para trabalhar no sector privado e, em muitos casos, ser mais bem recompensados financeiramente.

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Chegados aqui o pomo da discórdia entre mim e ST é óbvio. Como resolver o problema dos cerca de 3000 investigadores precários que existem no sistema científico nacional? A resposta de ST, espelhada no seu artigo, é uma: todos (ou quase todos) estes investigadores devem ser integrados no quadro das universidades de forma automática e sem concurso (ou recorrendo a concursos que, na prática, acabam por assegurar o mesmo). De acordo com ST, estes investigadores ganharam já concursos internacionais, tiveram avaliações anuais das suas instituições, o que configuraria condição suficiente para integrarem os quadros das universidades. Mais, de acordo com ST, “a lei 57/2017 prevê a abertura, ao fim dos seis anos [de contrato], de posições permanentes”. Vamos por partes.

Em primeiro lugar, sobre a mítica lei 57/2017 e a suposta obrigatoriedade das instituições abrirem concursos de permanentes. O ponto 5 do artigo número 2 afirma de forma cristalina que “A instituição, em função do seu interesse estratégico, procede à abertura de procedimento concursal para categoria da carreira de investigação científica ou da carreira de docente do ensino superior, de acordo com as funções desempenhadas pelo contratado doutorado, até seis meses antes do termo do prazo de seis anos referido no n.º 2.” (sublinhado meu). Pelo que sei, a Universidade de Lisboa encontra-se neste momento em fase de pedir um parecer jurídico que permita interpretar de forma cabal esta norma. No entanto, para um leigo como eu, lendo meramente a lei, parece-me de meridiana clareza que existe um ponto condicional à abertura dos concursos: o interesse estratégico da instituição. Assim sendo, ao contrário do que afirma ST, não existe qualquer obrigatoriedade. Existe, isso sim, a possibilidade de as instituições abrirem concursos se entenderem que aquele investigador/a tem um contributo importante para a sua missão no longo prazo.

Em segundo lugar, e aqui volto ao cerne do meu artigo anterior no Observador, a minha posição sobre os investigadores precários é a mesma há anos. Discordo totalmente e de forma veemente da ideia de que devem ser abertos concursos públicos cujo único objectivo seja a regularização da situação laboral dos precários. Pelo contrário, como sempre defendi, deve existir, isso sim, uma injecção forte de dinheiro no sistema para abrir concursos reais, competitivos e abertos, que permitam a insiders e outsiders do sistema, e até estrangeiros, possam ser avaliados de forma justa e rigorosa. Não deve existir, em momento algum, qualquer direito consuetudinário na universidade em que, um investigador, apenas porque está na casa há muitos anos e já passou inúmeras provas, argumento, este, que mereceria maior elaboração), deva ser escolhido para uma posição permanente.

Em terceiro lugar, de acordo com as promessas do governo, a abertura de concursos existirá a breve trecho, num esquema de FCT-tenure ou noutra qualquer declinação. Não tenho muitas dúvidas acerca desta promessa. No entanto, dos cerca de 3000 precários existentes, não existirão, certamente, 3000 concursos. Isso é um ponto assente, até porque, como sabemos, não existem recursos financeiros suficientes, mesmo que houvesse vontade política. Assim sendo, como pretende ST escolher os precários que ocuparão, por exemplo, os 1000 lugares definitivos que venham a ser criados? Neste caso, penso que a proposta que avancei acima, e que já tinha, de resto, introduzido no último artigo, é a mais justa e equilibrada. Os precários devem concorrer em pé de igualdade com todos os outros investigadores que se apresentem a concurso.

Em quarto lugar, a proposta avançada pelo CRUP de que passem a ser as instituições académicas a decidir livremente os procedimentos concursais, transferindo para isso a FCT as verbas destinadas para o efeito parece-me profundamente errada. Com todos os seus defeitos, a FCT continua a ser um oásis de meritocracia no sistema científico nacional. O problema da ciência em Portugal não se esgota, de resto, no financiamento, espécie de argumento que serve para aplanar visões muito diferentes para o sistema científico português e atribuí-la a uma qualquer entidade externa: a FCT, o estado, o socialismo ou o neoliberalismo, dependendo do gosto. Parte substantiva do problema que aqui se trata, de resto, deriva desse pecado original: a recusa das instituições de permitirem que a contratação passe por processos de selecção imparciais e competitivos, através de júris internacionais que, à partida, estarão menos dependentes do sistema de trocas da academia portuguesa. Pelo contrário, preferem organizar os júris a preceito, podendo escolher os candidatos que preferem (muitas das vezes, aqueles mais dependentes das hierarquias internas já estabelecidas e menos propícios a agirem independentemente, o que não deixa de ser um critério que rima muito pouco com o que imaginamos dever ser a ciência).

Por último, em relação à acusação de mediocridade que fiz a muitos precários, e que gerou, de resto, várias reacções vagamente escatológicas e pouco próprias de supostas elites intelectuais, penitencio-me por ter feito uma generalização abusiva. Não vou, naturalmente, ter uma discussão sobre currículos académicos nos jornais. No entanto, na área das ciências sociais, a que conheço melhor no contexto Português, e cujos currículos de muitos investigadores conheço com detalhe suficiente, reafirmo que a esmagadora maioria dos chamados precários tem percursos académicos muito pouco competitivos para os padrões internacionais. Muitos deles fizeram todo o seu percurso académico na mesma instituição onde, em muitos casos, ainda hoje trabalham, o que tem graves consequências para a qualidade académica (além de trazer os problemas já muitos discutidos da endogamia), publicam maioritariamente em revistas pouco reputadas e têm muito pouca visibilidade internacional. Sei que muitos argumentam que publicar em revistas reputadas, lidas pelos principais especialistas mundiais na matéria, seria ceder à bibliometria neoliberal. Estas são, no entanto, as regras do jogo internacional a que a ciência portuguesa deve aspirar, sob pena de passar a ser ainda mais periférica. Até ver, de resto, ainda ninguém inventou um sistema mais eficaz e justo – sabemos bem a latitude a que se podem emprestar certas avaliações “qualitativas”.

Face à escassez de recursos existente em Portugal, mesmo assumindo que existe agora um investimento sério na ciência, não existirá dinheiro para dar estabilidade laboral a todos os precários no sistema. Assim, a maneira mais justa e equitativa de escolher quem fica e quem sai deve passar por concursos abertos e limpos. Àqueles que não conseguirem restará a busca de empregos académicos fora de Portugal onde, estou certo, com a qualidade que ST lhes atribui, conseguirão singrar rapidamente.