O mistério desenvencilhou-se enfim há dias na minha cabeça, quando uma amiga dizia que gostava de áudios de whatsapp; que os amigos diziam que eram os podcasts dela. Era isto. Os amigos da amiga; o diz que disse – pressente o rigor científico em que assenta o escrupuloso argumento que hoje lhe proponho? Uma coisa admirável. Ainda assim, por favor, oiça. Ouvir é o mais importante neste texto.

O sucesso dos áudios de whatsapp e dos podcasts – estes dois fenómenos não podem não estar relacionados: porque é que as mesmas pessoas que, há anos, se fartaram de mensagens de voz nos telemóveis, desactivaram os atendedores automáticos, exigiram o fim do limite de caracteres aos SMSs, agora deixam umas às outras por whatsapp mensagens de áudio que dão tempo de fazer a barba, responder a uns mails e a dar um pulo aos saldos? Em vez de escrever? E porque é que a rádio de palavra estava a morrer e hoje não há vizinha que não tenha o seu próprio podcast? O que aconteceu entre uma coisa e outra? Aconteceu que os olhos talvez se tenham começado a fartar de ver.

O cérebro humano não regista muitas imagens por segundo: 12, 15, 20… Estamos muito em baixo no ranking animal (também) neste capítulo. Depende do indivíduo, da idade, do treino, da circunstância – pilotos de Fórmula 1 conseguem reter mais imagens e reagir mais depressa à informação que lhes é fornecida pela visão do que uma monja de clausura octogenária – mas, ainda assim, o espectro não é tão largo nem tão flexível que, até hoje, Alain Prost e irmã Lúcia não pudessem usufruir de, digamos, Casablanca sensivelmente da mesmíssima maneira. Os filmes – movies, diminutivo afectuoso de moving pictures – nasceram explorando isso mesmo: reproduziam 24 imagens por segundo, o suficiente para que o cérebro humano fizesse o resto: retinha 15 ou 20 na memória o tempo bastante para que se fundissem com a imagem seguinte e, assim, se criasse a ilusão de movimento.

Hoje, porém, faz-se vídeo a 50 frames por segundo, experiências de realidade virtual a 120, jogos de computador a 200. Diz-se que o cérebro já consegue reter pelo menos 60. Que os restantes contribuem para a nossa sensação de realismo, fundamental para o tempo de reacção do corpo nos jogos ou experiências imersivas de realidade virtual, mas não tanto, por exemplo, para o prazer da fruição estética favorecido pelo efeito de arrasto da imagem no cinema.

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Mas será que conseguimos mesmo? Ou por outra: que os nossos cérebros, que talvez ainda tenham visto a segunda Guerra do Iraque a dez frames por segundo, pelo videofone de Carlos Fino, possuem elasticidade suficiente para acompanhar a fenomenal explosão dos estímulos visuais em curso?

Estamos assoberbados por imagens. No tempo da economia da atenção, é isto que todas as marcas do mundo disputam: o tempo do nosso olhar. Desviar-nos a atenção para elas. Uma pesquisa rápida pelas mais sérias casas encontradas nos dez primeiros resultados do Google confirma a sensação de excesso: a primeira fotografia do mundo – a “Vista de uma janela em Le Gras” – foi tirada em 1826, isto é, ontem, em termos história da evolução humana; no ano passado, tiraram-se 1,94 mil biliões de fotografias na Terra. São mais de 60 mil por segundo. 14 biliões de imagens – fotos, vídeos, gifs, etc – são partilhadas por dia nas redes sociais. Temos televisões com 8 mil pixels e 200 canais, aos quais acrescentamos mais três ou quatro contratos com plataformas de streaming, que vemos enquanto trabalhamos no portátil, fazemos scroll no smartphone e vamos deitando o olho ao tablet para perceber se o puto ainda está a jogar ou já voltou aos desenhos animados. Temos ecrãs na cozinha, na sala, no quarto, no carro e, cada vez mais, em todos os electrodomésticos. Uma câmara no bolso, ecrãs gigantes nas estradas porque já não bastavam anúncios estáticos, óculos com internet e os primeiros chips a serem já implantados directamente nos cérebros.

Fotografamos e filmamos tudo na ânsia de capturar os momentos, os mesmos onde não estivemos por estar demasiado ocupados a fotografar e a filmar. Publicamos e transmitimos todos para o mundo, não se sabe ao certo para quem. Assistimos a 50 ângulos de telemóvel do mesmo evento, que foi comodamente filmado por profissionais, com meios profissionais, nas condições ideais, e devidamente exposto na plataforma oficial. Todos os dias, mulheres entre os 16 e os 25 anos, investem 15 minutos a tirar selfies – são quase quatro dias inteiros, ao fim de um ano. Estatisticamente, fotografamo-nos mais a nós mesmos do que aos nossos amigos e família. Produzimos mais fotografias só nos dois últimos anos do que em toda a história anterior. E a produção só vai continuar a disparar, à medida que a geração de imagens por inteligência artificial se torne tão comum como mandar um “ola” sem acento nem pontuação.

Não se admire, portanto, que tenhamos entretanto descoberto o gosto por ouvir pessoas a falar em podcasts de duas horas, sem música nem intervalos publicitários, separadores nem trilhas de som ambiente. As mesmas duas vozes, a perorar por vezes sobre um só assunto, sem mais. Ou que, ao fim de um dia pasmados a apascentar dados em múltiplos ecrãs, os corpos prefiram abrir a boca para simplesmente falar e, do outro lado, receber, em vez de mensagens de texto e muitos emojis, áudios de whatsapp. Os olhos já nos transbordam; os ouvidos oferecem uma porta menos escancarada. Não precisamos de mais estímulos, mas de menos. Urgentemente.

Num mundo tão inundado de ecrãs, a possibilidade de escolher ficar apenas a ouvir abre uma oportunidade de fuga. Talvez, a partir de dada hora, os olhos já não possam ver. Ou talvez seja só mesmo uma questão de tempo e habituação e, um dia, nos tornemos como as moscas, capazes de reter mil imagens por segundo. E talvez isso explique porque nos parecemos interessar cada vez mais pelo mesmo tipo de conteúdo que elas. E que, por este andar, nos aproximemos do mesmo destino.

Parar e escutar. Há poucas atitudes mais filosóficas a tomar nos dias que correm. Godard dizia que o cinema era a verdade 24 vezes por segundo. Talvez seja por isso, neste tempo de tantos mais frames, que já não saibamos bem o que é a verdade. Quanto mais o cinema.