Gosto de Lisboa assim, a abrir devagar. As lojas de roupa, as esplanadas, os serviços, as oficinas, as mercearias, os cabeleireiros. Os jardins. O Castelo em cima, o rio em baixo a espreitar por entre as colinas. Os jacarandás a florir ainda tímidos. Gosto de olhar para o lado e de me surpreender com o elevador de Sta. Justa, recentemente invisível por detrás de tantos calções largos e pernas escaldadas do sol.

Gosto do comentário da minha amiga, ao chegar à praça do município, tão bonito, tão limpo, cheira tão bem. Não me lembrava que as praças tinham cheiro, que não fosse o da sardinha em época festiva, ou o da urina pela manhã. Tinha-me esquecido que o Pessoa está sentado no Chiado, o Camões em frente, o Eça mais abaixo. Nos últimos anos era difícil vê-los por entre as bandeirolas dos guias urbanos, as carteiristas disfarçadas de turistas à procura de indicações, os avançados de souvenirs de plástico à medida de quem conhece o mundo em ímans do frigorífico, as obras de renovação constantes. Nem sabia que as fachadas podiam ser tão limpas e que as pessoas podiam não cuspir para o chão – agradeçamos à máscara que sempre impede alguns de escarrar na calçada, hábito aparentemente português, marco inegável da falta de consciência cívica. Afinal, que pessoa cospe no seu próprio soalho?

Gostava que aprendêssemos a estar na cidade como estamos em casa. A casa para onde convidamos quem queremos receber. Queremos continuar a Quarteirizar Lisboa e depois Piódão, Monsanto e Castelo Melhor? Também isto é cuspir no próprio chão. O que oferecemos determina quem nos visita.

Redescobrimos Lisboa nestes dois meses, com o prazer de estarmos no lugar certo, libertos do excesso, atentos ao essencial. Precisávamos que a cidade se afirmasse, também pelos seus poetas vivos, pelos seus museus e galerias, arte urbana, pelos teatros, música, pelos seus corredores verdes, tanto quanto pelas sardinheiras nas sacadas, a heterogeneidade das Avenidas Novas, os labirintos de Alfama, os miradouros da Graça.

A nossa ambição não pode ser copiar Barcelona e Veneza, integrar o circuito valsa em Viena, salsichas em Frankfurt, coliseu em Roma, sardinhas e fado em Lisboa. Aqui, no rasto desta Europa, fez-se a síntese do oriente e do ocidente do pensamento, edificou-se a democracia e a pluralidade linguística, o pensamento filosófico e científico. Não somos o parque temático Europa. Não foi para isso que Ulisses voltou para casa, nem eram pegas de cozinha com o eléctrico bordado ILove Portugal que Pénelope fazia e desfazia na espera.

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