Novos desacatos na Assembleia Municipal de Lisboa (AML) provocados pela natural aversão do PS em conviver com a discordância. A propósito de um Voto de Saudação ao 1º de Dezembro, apresentado pelo PPM. Chegado o momento da votação, o PS informou que não votava. Invocou “objecção de consciência”. E explicou: sentia-se ofendido pelo deputado do PPM numa das sessões anteriores, de maneira que não votaria nenhum documento do PPM “até que ele se retractasse publicamente”. Nem “a favor”, nem “contra”, nem “abstenção”, nada. O PS prometia ignorar o PPM, pelo processo naturalmente esquerdista de lhe negar a legitimidade; como se aquele partido não existisse, não tivesse sido eleito, ou não tivesse representação na Assembleia. A Mesa da Assembleia aceitou. Problema? O regimento não permite. Todos os deputados são obrigados a votar. Nas excepções, por impedimento, conflito de interesses, ou objecção de consciência, os deputados são obrigados a sair da sala. Está previsto nos pontos 5 e 6 do Artigo 65º do Regimento da Assembleia (disponível online no site da AML), em linguagem tão clarinha que até eu percebo.

Passava das sete da tarde, a sala era uma desolação; muitos daqueles senhores haviam largado o plenário em direcção a prados mais verdejantes. O que aconteceria se os deputados do PS – todos os deputados do PS – saíssem da sala? Deixava de haver quórum e a sessão acabava imediatamente. Não pode haver sessão sem quórum. Só que a saída destes deputados teria outra consequência, tão digna quanto a primeira, tão nobre quanto a exibição de força por parte do maior grupo municipal (o PS tem 27 deputados), contra o PPM (que só tem um), e tão prosaica quanto isto: seria marcada falta aos deputados ausentes e retirada a senha de presença. Por outras palavras, os bravos deputados do PS perderiam cada um cerca de 80 euros. Naturalmente, não saíram.

Os deputados da direita pediram a palavra para protestar. A presidente não lhes deu a palavra. Manteve as votações e mandou prosseguir os trabalhos. De todas as funções da Mesa da Assembleia, a mais decisiva é impedir irregularidades e assegurar que os procedimentos sejam cumpridos. Perante estas circunstâncias, a própria Mesa devia ter procedido imediatamente à contagem de quórum; e a senhora Presidente, Rosário Farmhouse, também ela deputada do PS, devia ter tomado a iniciativa de sair pelo seu próprio pé. Em vez disso, a Mesa recusou. Respondeu aos deputados da direita, uma, e outra, e outra vez, que não iria fazer qualquer contagem, e passou ao ponto seguinte da Ordem de Trabalhos. Os deputados “da direita” são, neste caso, os do Chega, CDS, Aliança, MPT, IL e PPM. Porque o PSD, pela dimensão da bancada, e pela autoridade jurídica dos seus deputados, podia ter desempenhado um papel determinante; mas manteve-se morno, semi-adormecido em cima do muro. Nem parecia o PSD. Ao fim de mais de uma hora, com a insistência dos deputados e a insensata resistência da Mesa (e do PS), fez-se a contagem nominal. E a plateia aturdida compenetrou-se do resultado: efectivamente, sem o PS, não havia quórum. Naquela terça-feira, dia 5 de Dezembro, houve deliberações votadas sem quórum. Ou então, mantendo-se o PS na sala, houve deliberações votadas irregularmente, sem a expressão de voto obrigatória por parte de uma bancada, cujos membros alegaram todos “objecção de consciência” sem qualquer intenção de levar a “consciência” até ao fim e, sobretudo, sem abdicar de receber a sua senha, incluindo a própria Presidente da Assembleia. Na avaliação dos seus fiéis depositários, nenhuma daquelas preciosas “consciências” vale mais de 80 euros. Mas como, desde que o PS recusou votar o documento do PPM, até que a Mesa aceitasse proceder à contagem, decorrera mais de uma hora, explicaram às actas e ao povo que aqueles deputados “saíram entretanto”.

Tudo isto parece uma história de lana-caprina, mas não é. A democracia é o respeito pelos procedimentos, porque, em democracia, quem manda é limitado na maneira de mandar. Se não, temos uma tirania electiva, que não se distingue de uma ditadura plebiscitária, onde quem forma maiorias faz o que quiser. Este é naturalmente o sentimento do PS, e da esquerda em peso, para quem as minorias só servem para exibir virtude e acompanhar a liturgia da cultura woke. A democracia não funciona assim. Ao contrário do que dizem os peritos, os simplórios, e os aldrabões, para estarmos em democracia não basta assegurar eleições livres; também é preciso, ao exercer o poder, estar limitado pelos procedimentos, ser obrigado a cumprir regras e ouvir vozes discordantes. Nesta guerra desonrada que abriu contra o PPM, o PS não mediu as consequências. Quando foi confrontado, abusou da prepotência para atropelar as regras e livrar-se de responsabilidades.

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