Continuamos a ser um país altamente endividado, e sujeito ao risco de uma crise financeira. O stock e o peso da dívida pública têm subido e descido em Portugal, por vários ciclos, nas duas últimas décadas. Foi só com o Programa de Ajustamento de 2011-2015, executado pelo PSD, que o peso da dívida cessou de subir. E que fizeram as políticas das “contas certas» do PS que se seguiram? Começando em 2016 veremos que o peso baixou e depois subiu repentinamente com a pandemia e agora está em rota decrescente, mas, como veremos, com políticas totalmente diferentes. Em que medida esta evolução é do mérito do Governo ou de fatores que lhe são alheios?

Em 2016, aquando do fim da troika, era extraordinário como diferiam as projeções para evolução do peso da Dívida: do FMI, da Comissão Europeia e do Ministério das Finanças (Relatório do Orçamento). Todas apresentavam rácios descendentes, mas com diferenças de cerca de 30 pontos percentuais para o ano horizonte de 2030: o intervalo situava-se entre um rácio da dívida de 90% (OGE-2018) e 117% do PIB (Comissão). O cenário do OGE-2018 pressupunha a manutenção das taxas de juro do BCE indefinidamente, e das suas intervenções maciças de liquidez, o que não era compatível com a experiência histórica, nem mesmo com a dos EUA, onde essas intervenções já tinham terminado. Quem acertou? “the jury is still out”.

Suponha o leitor que tem um empréstimo bancário para comprar uma casa de 100 mil Euros, a uma taxa de juro anual de 4% e com uma taxa de inflação de 2%. Nesse caso, está a pagar por ano em juros 4 mil Euros, mas o custo real do seu empréstimo é de apenas 2 mil Euros (a taxa de juro real é igual à taxa de juro bancária nominal menos a taxa de inflação: 4%-2%=2%). A inflação reduziu o capital dos outros 2 mil Euros.

Suponha agora que a taxa de juro se mantém em 4% e a inflação sobe para 8%, então, a mesma aritmética dá 4%-8%=-4%, ou seja, como o que paga ao banco não chega para compensar aquilo que o banco perde por efeito da inflação no capital emprestado e a reembolsar, o banco está efetivamente a subsidiar o seu empréstimo. Só taxas de juro reais positivas representam custos financeiros para os devedores e ganhos para os credores; no caso de taxas de juro reais negativas, ganham os devedores e perdem os credores.

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O mesmo se passa com a Dívida Pública, se a taxa de juro real for negativa, aquela reduz-se por efeito da inflação, em benefício dos contribuintes e em prejuízo dos credores que compraram as obrigações. E este efeito é automático, isto é, endógeno, sem que a política orçamental intervenha diretamente. Da mesma forma, quando o PIB sobe o rácio da dívida sobre o PIB baixa, por efeito endógeno, embora agora não afete o valor nominal do stock da dívida. Só acumulando excedentes primários é que a política orçamental pode reduzir a dívida de forma sustentada, sem tomar em conta aqueles efeitos. O FMI tem afirmado que Portugal necessita de um excedente primário anual de 2,5% do PIB para tornar a Dívida sustentável.

O peso da Dívida Pública no PIB desceu significativamente entre 2016 e 2019, depois deu um salto de quase 20 pontos percentuais (p.p.) do PIB em 2020 com o Covid, e em seguida entrou numa trajetória descendente devendo atingir nos finais de 2023, 109% cerca de 7 p.p. abaixo de 2017. Já em termos absolutos, não tem parado de subir, passando de 247 em 2017 para 274 mil milhões de Euros em 2023, e não há perspetivas de se reduzir até 2025.

Mas a que se deve a redução do peso? Às políticas orçamentais ou aos chamados fatores endógenos? O Quadro1 faz a decomposição destes efeitos.

Quadro 1

Fonte: Ameco, novembro de 2022, Banco de Portugal e cálculos do autor

Tomando o período de 2016 a 2019, do XXI Governo, e que correspondeu ao período de recuperação da crise económica e financeira, houve uma redução do peso da dívida de 15 p.p. do PIB, mas em que foi a política orçamental que contribuiu largamente para aquela queda (18 p.p.) associada ao acumular de excedentes primários. Esta política teve por trás a manutenção da elevada carga fiscal e o corte no investimento público, para além das cativações de despesa, a chamada “política das contas certas”. Política bem diferente iria tomar os Governos de Costa seguintes, bastante mais expansionistas, embora se mantivesse a elevada carga fiscal.

Tomemos o período de 2020 a 2025, que abarca a recessão da pandemia e a sua recuperação. Pressupondo a continuação da atual política orçamental até ao final do período, o peso da dívida deve cair os mesmos 15 p.p. do PIB. Mas agora sem contribuição da política orçamental, sendo a maioria devido às taxas de juro negativas (10 p.p.) e o restante à recuperação do PIB.

Assim, as subidas das taxas de juro pelo BCE não têm sido suficientes para reduzir o efeito da inflação, levando a taxas de juro reais fortemente negativas para a Dívida Pública (como se pode constatar pela linha “efeito do juro” no Quadro, onde um valor negativo significa taxa de juro real negativa e que contribui para a redução da dívida). Ao contrário do que se diz, a política de taxas de juro do BCE tem sido até bastante contida, com a inflação a provocar uma forte queda do peso da Dívida.

Está largamente documentado que uma das formas mais usadas pelos governos para reduzir a Dívida Pública é pela inflação: ora aqui temos mais um episódio a confirmar a experiência histórica. Até os credores começarem a exigir taxas de juro nominais cada vez mais elevadas para compensar o risco inflacionista!

Enquanto a redução do peso da Dívida foi conseguida pelo XXI Governo através da austeridade, a partir dessa data foi a inflação e a recuperação do PIB que têm contribuído para a sua redução: e não por causa das políticas dos governos, como se quer fazer passar.