O meu amigo (sempre gostei muito quando se nos dirigem por “o meu amigo”. Geralmente, significa que não se lembram do nosso nome e que jogaram as cartas todas na fuga em frente. Todavia, nestes tempos sensíveis, talvez seja avisado actualizar: o/a meu/minha/minhe amig@) perdoará. Em semana de congresso do Partido Socialista, talvez esperasse de uma crónica das pequenas coisas que falasse da gola alta do novo secretário-geral ou da sensual aparição da barriga do dito espreitando a oportunidade, ilustração acabada da eterna verdade de que a manta nunca chega para tudo. Contudo, a crónica é, lá está, das pequenas coisas; e, afinal, para quem trabalha com palavras, são quase sempre elas a saltar-nos à vista. Sim, aquilo de que lhe quero falar esta semana, amig@ leitorx, é de Portugal. Inteiro.

Tipicamente, os slogans políticos contêm um “call to action”: uma chamada à acção, a tentativa de convocar quem lê para um determinado objectivo. Daí a presença quase obrigatória de um verbo: “mudar”, “ganhar”, “vencer”, “fazer”, o “can” ou o “change” de Obama”, o “make” de Trump. Fórmulas mais concisas dispensam o verbo, mas optam por conceitos que diríamos “activos” por si só: “Esperança”, “Mudança”, “Confiança”, “Futuro”. Os “Tempos Novos” da aliança que Carlos Moedas encabeçou para Lisboa, por exemplo, contêm esse elemento; não precisamos de verbo para subentender a acção: mudar, virar a página, votar noutros, fazer diferente, para ter resultados diferentes, políticas diferentes, uma cidade diferente.

Desde o início, pois, algo surpreendia no “Portugal Inteiro” com que Pedro Nuno Santos se apresentou às eleições do PS. Parecia demasiado monolítico, fechado, grande, mas inerte. O que éramos chamados a fazer? Pensar no país como um todo? Mas não o costumamos fazer? Os eleitores não o fazem? Costa não o fazia? A oposição não o faz? Terá Portugal algum problema de unidade? De identidade? Estaremos em risco separatista, como Espanha? Ou com desejos expansionistas de recuperar Olivença? Onde é que me alisto? Alguém estará a fazer campanha só pelo Norte? Ou pelo Sul? Ou pelas ilhas? Ou pelos distritos com R no nome? Ou por aqueles onde há lampreia? Ou por onde se diz estrugido em vez de refogado?

Certo. Poderia tratar-se da mesma ideia do “Unir Portugal”, do PSD de Montenegro, mas aí ela parece mais bem conseguida, não parece? Num país em que, como em boa parte do Ocidente, as posições políticas se começam a extremar, aqui estamos nós para unir, moderar, juntar ao centro. E, justamente porque o nosso adversário já está a dizer isso (isto é, antes de ter variado para o insosso “Sentir Portugal”), será que deveríamos ir a correr dizer exactamente o mesmo?

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Talvez fosse mensagem apenas para consumo interno: José Luís Carneiro recolhia mais apoios a Norte, Pedro Nuno dizia que tinha o país todo com ele. Talvez.

Todavia, este fim-de-semana, no dito congresso de apresentação da nova colecção para o Outono/Inverno socialista, já resolvida a questão das eleições internas e podendo agora falar ao eleitorado em geral, lá continuava, no cenário e no discurso, inflamado, o “Portugal Inteiro”.

Que quereriam eles com isto?, pensámos cá com os nossos botões antes de ir ao roupeiro verificar como estávamos de turtlenecks. Claro que há desigualdades no país, litoral/interior, cidades/campo, mas, de todos os nossos problemas, diria que estes não têm estado no top 20 dos últimos tempos. Talvez assim que resolvamos o caos das urgências, a falta de médicos, os ordenados dos enfermeiros, a carreira dos professores, a greve dos polícias, a dos funcionários judiciais, os atrasos da justiça, a crise na habitação, o caos nos transportes, a inflação, a fuga dos jovens qualificados, a sustentabilidade da Segurança Social, os sem-abrigo, a pobreza, o combate aos efeitos da seca, a falta de meios na defesa e outros temas transversais a todas as regiões, talvez possamos voltar a falar sobre os desequilíbrios no país – mas primeiro, podemos concentrar-nos nos desequilíbrios do país?

Só que, entretanto, começaram os discursos e levantou-se-nos a dúvida. Veio Carlos César e disse que Marcelo não fez “o que era devido”. Veio Manuel Alegre e disse que Marcelo cometeu “um erro”. Veio o inefável Ascenso e disse que não deviam ter apoiado aquele Presidente. Veio Pedro Nuno e deixou claro que, para a próxima, vão ter um candidato “próprio”. Pelo meio, Costa declarou que foi “derrubado”, enquanto Augusto e o resto da tropa lá continuaram a distribuir ataques ao Ministério Público, porque a justiça não pode interferir na política, mas os políticos podem tentar, quantas vezes quiserem, condicionar a justiça. À descarada.

Voltámos a olhar bem para o cenário e vimos melhor. Lá estava o “Portugal Inteiro” e, por cima, o símbolo do PS. E pensámos: tu queres ver que o “call to action”, a chamada a agir, não é para o país, mas para o PS? Será que o PS é que quer “Portugal Inteiro”? Não apenas o governo, não apenas um Presidente da Assembleia da República completamente partidário, não apenas um Banco de Portugal controlado, mas também um Presidente da República amigo, e talvez outra Procuradora-Geral da República, porque esta que lá pusemos, afinal, também não serve? “Interfere”?

Já no discurso de encerramento, aquele que, tradicionalmente, é mais aberto ao país, veio o ímpeto muito pessoal do novo secretário-geral completar a ambição: quer ser primeiro-ministro, mas também quer gerir as empresas públicas, e decidir no que devem investir as empresas privadas, quanto ganham as pessoas e por quanto podem arrendar as suas próprias casas. E já agora, um país “de topo”, esse que até pela Roménia já foi ultrapassado.

Sim, neste país em que parece fácil a um socialista chegar a ministro, mas a um contribuinte difícil conseguir uma consulta, talvez o PS queira “Portugal Inteiro” como quem diz o fiambre inteiro. Para depois fatiar a gosto. De Belém a São Bento, do público ao privado. A maioria absoluta já lá vai. Agora, o tempo é de “all you can eat”.