Hoje foi o nosso primeiro dia. Primeiro dia com todos assumidamente em casa, afastados do contacto físico social, resguardando-nos e resguardando os outros com o mesmo sentido de proteção que desejamos em nós viver.

Duesseldorf acordou com sol, as oliveiras na varanda não tremem, as espreguiçadeiras que temos lá fora convidam a uma coca-cola e a um livro que, não tivesse sido tão estranhamente marcante o último (Paula, de Isabel Allende), também não me lembraria de ler. Também é o primeiro dia de sol. Nos últimos meses longos, quando espreitou, não foi mais que isso mesmo: um espreitar entre as cortinas de nuvens para decidir ir curtir o dia para outro lado qualquer.

Sentámo-nos os cinco à mesa para um pequeno-almoço tardio e demorado. Hoje o caminho para a padaria, ainda que rápido, foi vincado, por certo, por uma atenção redobrada a cada passo. Que bênção esta o de habitualmente podermos caminhar sem medos nas ruas das nossas cidades!!  Sem pressa, e com o estômago já reconfortado, esclarecemos de novo o desafio a que nos dedicaremos nas próximas semanas (seja o tempo possível de ser estabelecido nestes dígitos!), juntámos ideias, e registámos o entusiasmo dos miúdos no papel! É tão boa esta alegria ingénua deles!! Depois, organizámos um calendário, e contamos ter a receita para nos lançarmos à vida!

Se a alguém puder servir de orientação, enumero as nossas conclusões de pequeno-almoço. Cada pessoa saberá o que mais lhe convém, mas se alguma ideia puder ser útil, ficamos contentes. Cá vão:  ao acordarmos, manteremos a rotina de nos prepararmos para o dia. Os mais velhos tomarão duche de manhã, os mais novos ao fim da tarde; vestir-nos-emos, faremos as camas – seja o presente inusitado chão para introdução de novos costumes; afinal, os rapazes querem-se habilidosos em todos os campos!!!

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Depois, num período da manhã, o Francisco (que tem seis anos e está na primeira classe) trabalhará um pouco com livros escolares, o Manuel (que tem 5 anos e começará a escola em agosto) sentar-se-á também à mesa para desenhar ou fazer livros de exercícios que o entusiasmem, enquanto o Pedro (que acabou de fazer dois anos), brincará como quiser,  afinal deve ser apanágio de quem é pequenino! Leremos um livro em conjunto uma vez por dia, combinámos que nalgumas vezes o Francisco tentaria ler para nós, mesmo que em alemão, onde se diz mais à vontade na leitura em voz alta.

Todos os dias iremos um pouco à varanda, para apanhar sol (se houver), jogar futebol, quiçá, treinar as habilidades em conseguir andar de trotinete e bicicleta num espaço contido. Dividiremos as tarefas de casa, pois deixaremos de ter ajuda: eu lavarei casas de banho e cozinha, darei conta de outros extras, o papá aspirará, os meninos ajudarão com os vidros. O Manel ajudará a pôr a mesa ao almoço, e o Francisco ao jantar, e depois inverteremos a ordem, pois este foi ponto de desordem infantil!

Ouviremos um pouco de música por dia, dançaremos se tivermos vontade. Os meninos ouvirão histórias e música na Tonie Box. O Manuel prometeu deixar o Pedro envolver-se nas brincadeiras com os Legos e os Playmobil. Os papás tentarão retomar a rotina de fazerem 30 minutos de ginástica localizada juntos por dia. Talvez ao fim de semana também seja possível adicionar um episódio de uma série ao fim do dia, se se jantar cedo. Continuaremos a manter uma alimentação saudável, mas tentaremos beber mais água, mais chá como o de gengibre, mais limonada, e comer mais tangerinas e laranjas e frutos vermelhos. Cozinharemos em conjunto, vestidos a rigor, porque se torna uma brincadeira, e porque gostamos da casa a cheirar a bolos. Os meninos poderão ver um bocadinho de televisão no final da tarde, ideia que lhes arregalou os olhos, já que habitualmente corresponde apenas a uma rotina de fim de semana. E queremos fazer mais FaceTime com a família e os amigos, assegurar-nos de que a vida social se pode cumprir de alguma maneira num registo metafísico.

Se todos estivermos a cumprir o isolamento social indispensável para uma tentativa de contenção de transmissão do novo vírus Corona, mais do que nunca, estamos num mundo de proximidades e de distâncias anuladas. Nunca o mundo virtual se sobrepôs tanto ao mundo físico. Deixou de fazer diferença, no contacto com as nossas pessoas queridas, estarmos a viver na Alemanha, ou continuarmos cidadãos na nossa belíssima Lisboa.

Durante a semana passada, já tínhamos decidido cancelar as atividades extracurriculares dos meninos, as massagens que fazia, o curso de alemão de todas as manhãs, e o papá tentará o mais possível trabalhar apenas de casa. Cabeleireiros, manicures e afins também estão fora de jogo. Não mancharemos a dieta com sushi, nem com gelados, nem comida fria encomendada da rua. Outra comida que encomendemos, obrigar-nos-á a um cuidado atento após a receção dos sacos ou caixas, como por exemplo passar a comida para pratos nossos, deitar no lixo o que vem de fora sem apoiar em mesas ou superfícies de casa, e naturalmente lavar bem as mãos antes de comer (enfim, valerá o que tiver que ser, mas certamente terá o peso da autotranquilidade). Dispensámos as senhoras da limpeza, tentando limitar o contacto social a quem nos entrega correio e encomendas.

Tirei as pulseiras e anéis, guardámos as alianças, com a certeza de a sua aparente ausência não nos diminuir a alegria de nos amarmos tanto. Usamos as escadas, não o elevador, apesar de ainda assim eu ir desinfetar os botões do mesmo. Limpamos os puxadores das portas, a campainha, as chaves, os telemóveis e computadores com frequência. Temos cuidado com o dinheiro vivo, infindáveis os trilhos por onde andou! Temos comida, papel e remédios para vários dias, quiçá, semanas. Tentaremos ir comprar pão fresco e legumes e fruta duas a três vezes por semana, no máximo; temos colocado o pão fresco no frigorífico, mantém-se bom no dia seguinte ou nos dois dias seguintes, para mais apreciamos colocá-lo na tostadeira ou torradeira. O resto, compraremos online se for indispensável. E, claro, lavamos muito as mãos, como já o fazíamos, mas com ainda mais zelo, hidratamo-las (não tão eficazmente, as minhas estão com ar usado e com gretas), colocamos toda a roupa de todos, todos os dias para lavar, arejamos a casa logo de manhã, e mudaremos as toalhas de casa de banho e cozinha mais do que nunca.

A lista vai extensa, estamos conscientes, alerta, e motivados na pro-ação. Sabemos de que não garantirá nada, mas a certeza de termos tentado tudo, por nós e pelos outros, assumidamente trará conforto no decorrer do caminho.

Penso muito nos meus colegas médicos, no isolamento social a que não se podem permitir, no medo que os acometerá (como a todo o comum mortal consciente da dimensão dramática de uma pandemia a um vírus novo) e que, ainda assim, os mantém firmes na devoção de salvarem vidas. Comovo-me com o relato de amigos italianos, que vivem situações calamitosas, teoricamente insuspeitáveis no decorrer desde século, nos hospitais de diferentes, maravilhosas,  cidades.

Lembro-me a primeira vez que ouvi falar de “pandemias” na faculdade; foi precisamente numa aula com a Dr.ª Graça Freitas. E lembro-me de as ver longe, e sei que fui pondo o termo também longe, jamais prevendo que, numa altura em que já me apetecia sonhar com a novidade anual do verão, uma repentinamente caiu-nos nos dias para nos bloquear o ritmo desenfreado a que estávamos a vivê-los. Talvez demasiado desenfreado. Talvez demasiado desatento. Talvez seja tempo de nos darmos mais tempo enquanto famílias, de filtrarmos o desnecessário, de nos desencaixarmos do supérfluo.

Vejo na serenidade das oliveiras, a esperança de que precisamos agora. Estamos todos juntos nisto. Talvez não haja força mais extraordinária do que a fusão entre os que se amam. Seja hoje, como na música, o nosso Primeiro Dia de todas as nossas vidas. Tudo correrá bem.

14.03.2020