Primeiro há de aprender-se a reconhecer e recolher os ingredientes para um bom lóbi, pois, assim como fazer sopa, cozinhar lóbis tem toda uma ciência. Estando essa ciência cada vez mais apurada, ela existe, no entanto, desde que existem seres humanos.

Aprendi a reconhecer uma boa sopa de lóbi, desde tenra idade com o meu avô materno. Vivendo eu distante dele, na minha juventude, sempre que podia, deslocava-me para a terra materna, onde passava as minhas férias. O meu avô Carvalho, era um homem extraordinário, calado, sempre bem-trajado e nunca perdendo os bons modos, tinha sempre como manter a postura, quaisquer que fossem as circunstâncias.

Isto sério, porque o Carvalhiço, como todos lhe chamavam carinhosamente, gostava de beber uns copos de vez em quando. Três a cinco vezes por ano, o Carvalhiço encharcava-se e quando bebia tinha algumas particularidades: o período em que se mantinha bêbado (por vezes chegava aos três dias sem ir à cama), a lucidez, resistência e atitudes decorrentes da extrovertida inspiração do álcool que, muitas vezes, roçavam a impetuosidade, numa espécie de coragem que, pelo seu grau de irracionalidade, transcendia a própria lógica que dá lugar à bravura.

Do homem introvertido, quando sério, o avô Carvalho transfigurava-se e virava filósofo, político, defensor dos oprimidos e herói das causas perdidas (eu não bebo, mas esta última característica, talvez tenha herdado dele). Para se ter uma ideia, o Carvalhiço, na juventude, quando já tinha por hábito este ritual das maratonas filosófico-político-heroicas, era conterrâneo e de certa forma amigo do António Oliveira Salazar. Nasceram e cresceram em terras vizinhas, ainda que o Salazar fosse mais velho, coincidiram em várias circunstâncias, mesmo depois dos primeiros tempos de juventude.

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Acontece que, já o Salazar era Presidente do Conselho, estando de férias no Vimieiro, o Carvalhiço, num dos dias de “maratona”, resolveu ir tirar explicações sobre alguns assuntos que o apoquentavam e com os quais não concordava. Para isso, sorrateiramente já noite dentro, apresentou-se na frente da casa do homem para tirar satisfações, sobre o absurdo que era ter de tirar licenças para tudo e mais um par de botas. Mas o que o apoquentava mesmo era o da licença de isqueiro, que lhe parecia um absurdo. Não pelo fato de ele também fumar, mas sim pelos valores que estavam representados, nos propósitos que tal lei procurava defender, e, por sua vez, no simbolismo que havia, em combatê-la.

Valeu-lhe na ocasião a benevolência e atenuantes que o homem sentiu que deveria aplicar à situação disparatada que tinha sido provocada pelo estado de embriaguez. Entretanto, o homem caiu da cadeira, o avô Carvalho já faleceu há alguns anos, mas esta passagem ficou-me sempre na memória, até porque eu conheci bem o sabor da impetuosidade das maratonas do Carvalhiço, vindas como efeito colateral, pois muitas noites passei em claro a ouvi-lo dissertar sobre as injustiças do mundo e o que era preciso ser feito, como que procurando nesses discursos, de fim de maratona, mas ainda sob o efeito do álcool, justificar-se, de forma a tornar tal pecado num ato, se não digno, pelo menos legítimo, perante o julgamento da sua própria sobriedade dos dias seguintes.

Não obstante o risco que correu o Carvalhiço quando foi confrontar o Presidente do Conselho sobre o motivo das tais exigências, não é que, de tal intento, além de não ter sido preso de imediato, ainda obteve a resposta de justificação. Explicando-lhe o que ele já sabia, porque na realidade o Carvalhiço, não queria uma resposta, mas sim uma mudança.

“…como não podemos contar isqueiros, pela quantidade de lumes acesos, para fazer caldos de galinha…”,”…só desta forma temos como controlar e assim evitar fugas e criação de vantagens por conta de interesses que não nos são proveitosos”. _ Disse-lhe o homem.

Note-se que a licença de isqueiro foi uma medida proteccionista implementada em Portugal durante o Estado Novo e regulamentada pelo Decreto-lei nº 28219 de novembro de 1937, visando a proteção da indústria fosforeira nacional, tendo vigorado até maio de 1970. De facto, a Sociedade Nacional de Fósforos, a Fosforeira Portuguesa de Espinho e a Companhia Lusitana de Fósforos do Porto enriqueceram, elas e algum, de um seleto tecido económico português, durante largos anos.

Essa licença, um pedaço de papel oficial emitido pelo governo, custava 10 escudos e deveria ser transportado pelo dono do isqueiro. Em caso de falta da licença, o portador do isqueiro era multado em 250 escudos. Se este fosse funcionário do governo ou militar, a multa poderia ser elevada para 500 Escudos.

No mesmo Decreto-Lei, podemos observar que os valores das multas “pertencerão 70 por cento ao Estado e 30 por cento ao autuante ou participante”. “Havendo denunciante, pertencerá a este, metade da parte que compete ao autuante”, acrescenta-se. O documento previa igualmente a conversão da importância da multa em prisão, “à razão de 25 escudos por dia”, na eventualidade de o “transgressor recusar o pagamento da multa e do imposto”.

Nem o Presidente do Conselho, nem o avô Carvalho, suspeitariam que tal episódio e todo o seu contexto simbólico, serviria anos volvidos, para descrever o problema que são os lóbis instalados na atualidade, mas também, na resposta do Presidente do Conselho, encontramos para muitos desses cenários atuais, uma eficaz receita para o seu antídoto.

Receita do meu avô para cozinhar lóbis

  1. Escolha com que ingrediente(s) vai fazer o seu lóbi – para a escolha, convém procurar algum tipo que ainda esteja em fase de crescimento, ou por consolidar e que permita “cozinhar”, usando os temperos da sua conveniência.
  2. Procure os restantes interessados na sopa do seu lóbi – os interessados naturais, serão sempre os donos dos temperos com que quer confeccionar os “ingredientes”.
  3. Procure fornecedores adequados de tachos, panelas, outros instrumentos e demais utensílios para cozinhar o seu lóbi.
  4. Garanta uma equipa de ajudantes de cozinha competente que conheça essa receita e todas as versões possíveis de serem criadas a partir dela.
  5. Junte-lhe tudo de forma adequada, coloque em lume brando e espere.
  6. Depois do tempo necessário a “apurar”, pode servir(-se).

Algumas sugestões para melhorar os resultados do lóbi: Publique gratuitamente a receita de como fazer, ofereça cursos de como cozinhar o lóbi, proporcione sob forma aparentemente grátis, a compra dos utensílios, ingredientes e os temperos – vai ver que todos passarão a comer do lóbi.

Receita para congelar lóbis

Em jeito de conclusão, aprendendo nas entrelinhas, entre “as receitas” do meu avô e a justificação do Presidente do Conselho António Oliveira Salazar, para evitar e/ou anular os efeitos dos lóbis instalados, precisamos de ter, de forma adequada, toda a informação organizada, disponibilizada de forma rigorosa, transparente e de acesso universal. Sejam quais forem os ingredientes em causa, entenda-se as commodities, sempre que aplicado o antídoto à receita do Presidente do Conselho, e mesmo depois do lóbi cozinhado e pronto a sair, conseguimos suspender os seus efeitos perniciosos para o bem comum.

Uma vez que a criação de novas receitas de lóbis é algo inerente à condição humana, não havendo, por sua vez, como evitá-los, podemos sempre congelá-los.