1 Os desafios levantados pela situação de contingência causada pela Covid-19 demonstraram a necessidade de implementar plenamente e sem mais dilação a Carreira Farmacêutica (CF) no Serviço Nacional de Saúde (SNS), legalmente consagrada no Decreto-Lei n.º 108/2017. Esta carreira, estruturada em três ramos diferenciados de actividade – Farmácia Hospitalar, Análises Clínicas, Genética Humana –, fundamenta-se na redefinição e clarificação do perfil funcional dos farmacêuticos em exercício de funções públicas, de modo a contribuir para a sustentabilidade do sistema de saúde, pondo ao serviço dos cidadãos o seu saber e as suas competências técnico-científicas, salvaguardando sempre o interesse público e o cumprimento de rigorosos padrões ético-deontológicos decorrentes da sua regulação específica como profissão de saúde especializada e altamente qualificada. Daí a necessidade de harmonizar a intervenção farmacêutica nos diversos domínios, conferindo-lhe identidade e solidez próprias de uma carreira profissional específica que suporta diversas intervenções diferenciadas.

2 O grau de diferenciação associado à CF impôs, naturalmente, a definição de um instrumento legal de formação específica, como garantia da necessária qualificação para que os farmacêuticos possam assumir as responsabilidades e funções aí descritas. Surge assim a Residência Farmacêutica (RF), enquadrada pelo Decreto-Lei n.º 6/2020, legatária da tradição formativa do Internato Farmacêutico (1968) e do Estágio de Carreira (1994). Resulta do articulado legal a pertinência da intervenção da Ordem dos Farmacêuticos em estreita colaboração com o Ministério da Saúde, numa lógica de titulação única do processo, definindo áreas profissionais de especialização, programas de formação, idoneidades formativas, numerus clausus no acesso anual à RF após prova nacional, processos de avaliação conducentes à atribuição do título de especialista. Pretende-se, assim, garantir a padronização e uniformização de critérios para a atribuição de especialidade e posterior acesso à CF.

3 Assim, é preocupante a indefinição sobre a implementação da RF, como via de acesso à CF e seu factor constitutivo. Mesmo após a nomeação da Comissão Nacional da Residência Farmacêutica, em Agosto de 2020, constituída por profissionais de reconhecida competência, os avanços têm sido poucos e a situação permanece incerta. Preocupação que só aumenta, tendo em consideração que se procedeu à contratação de um número não menosprezável de farmacêuticos para o SNS no contexto da pandemia, com vínculo laboral ao abrigo dos regimes especiais de contratação instituídos e que não são contemplados pelo regime de equiparação constante na legislação relativa à RF, que restringe tal possibilidade aos profissionais que, à data da entrada em vigor (1 de Março de 2020), exercessem funções no SNS.

4 Certamente que a Covid-19 veio alterar todas as planificações e que o enquadramento jurídico é complexo. Contudo, torna-se emergente clarificar e resolver esta situação excepcional através de um regime excepcional. Seria incompreensível que fosse vedada a possibilidade de acesso à RF por via de equiparação parcial, legalmente prevista, a estes profissionais que possuem já experiência profissional relevante no SNS, gerando-se assim uma situação de desigualdade no acesso à CF e não se cumprindo o princípio de universalidade a ela subjacente, em que a intervenção de todos os farmacêuticos é enquadrável no mesmo âmbito, independentemente do seu local de exercício e sem prejuízo da diferenciação exigível às funções desempenhadas. Do mesmo modo, o acesso por via da prova nacional de acesso, de calendário ainda indeterminado, não seria aceitável, pois geraria uma situação muito prejudicial de imprevisibilidade na gestão dos serviços e das instituições, com prováveis consequências futuras na prestação de cuidados farmacêuticos e no próprio desenvolvimento da RF, bem como no planeamento dos órgãos de gestão.

Acrescente-se que não resulta daqui encargo financeiro adicional para o Estado, visto estes farmacêuticos estarem actualmente em integral exercício de funções, suprindo necessidades permanentes há muito reportadas e muito longe de estarem ainda plenamente satisfeitas (segundo a Ordem dos Farmacêuticos, mais de 150 farmacêuticos nos cuidados hospitalares e pelo menos 200 nos cuidados de saúde primários, já antes da pandemia). Necessidades, aliás, assumidas no discurso, mas não na praxis, por sucessivas tutelas, o que tem conduzido a limitações no desenvolvimento da missão dos serviços farmacêuticos, como já reconhecido nos Planos de Reorganização da Farmácia Hospitalar (2000/2004).

5 No ano de 2022 comemorar-se-á o 60.º Aniversário do Estatuto da Farmácia Hospitalar (Decreto-Lei n.º 44 204, de 2 de Fevereiro de 1962), diploma altamente inovador à época (inclusivamente a nível europeu) e ainda hoje referencial para todos os farmacêuticos, independentemente da sua área de actividade. Passadas seis décadas, importa analisar o farmacêutico de hoje e de que forma a sua autonomia técnica e científica, adequada à prática profissional, pode contribuir para os desafios que se lhe colocam: a digitalização, o trabalho interdisciplinar, a definição de protocolos técnicos e de redes de referenciação (com outros profissionais de saúde, mas também com os farmacêuticos comunitários),o diálogo e a ligação com a Academia, a proximidade ao utente, a primazia do cidadão na prestação de cuidados, a saúde – humana, animal, ambiental – como um todo integrado. A valorização dos farmacêuticos do SNS, através da concretização abrangente da RF e CF, e consequente incremento da eficiência e qualidade dos serviços prestados pelos farmacêuticos em prol da saúde pública, seria a melhor celebração da efeméride.

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